APRESENTAÇÃO À 2ª EDIÇÃO
SAINDO DA PISCINA DE ÉTER
por Ana Karina Luna

“ ‘Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem’. O que quer dizer: amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo.”
- Jacques-Alain Miller


Sim, este é mais um livro sobre o amor. Entretanto, não desejo que a percepção desse sentimento pare na sua noção de amor romântico, porque isso seria ficar na superfície da experiência vivida. Seria apenas ver um presente sem um passado. Pelo contrário, desejo que o passado seja permitido aparecer no presente que vive o amor. Isso é o que me atrai: o ser humano possui, na sua psique, uma atividade chamada memória; desses acontecimentos lembrados (mas também significados) do passado, o humano molda os eventos do presente. Assim, interesso-me pelo condicionamento do ser; e esse poético caminho de uma possível libertação dele.

(O condicionamento sendo a condição humana — de erro, de caída, de cegueira, de ilusão, de leviandade. E atemoriza-me dizer... que acho-a bonita. Ah como eu demorei para chegar aqui. Esse livro me ensinou.)

Simplesmente dito: o passado se repete, é sempre a mesma história, com os mesmos personagens, os mesmos atos, os mesmos símbolos, a mesma cortina que abre e fecha. Às vezes, demoramos a perceber essa repetição, se é que percebemos. Às vezes, nunca chegamos a fazer esse registro de que existe uma repetição. E por vezes, ou quase sempre, essa é até mesmo uma história de uma linhagem inteira... É uma memória muito mais antiga do que imaginamos.

Assim é que, embora seja, muitas vezes, através do amor romântico que vivenciamos um amor muito mais complexo que está cá dentro, como por exemplo, o amor que aprendemos com os nossos pais, nenhum amor romântico, paixão ou simples encontro é apenas um evento desconectado da história de amor que vivemos desde o dia 1 das nossas vidas. Porque o ser humano nasceu de um amor — seja ele do tipo que for, já que amor é uma palavra grande, envolve até o ódio, sua aparente contraparte: “quando não posso amar, odeio”, toda polaridade sendo o mesmo lugar, a mesma coisa, pelo avesso... — e assim, o ser humano continuará sendo sempre um ator do Amor. É através do exercício Dele que qualquer vida é levada à frente. Ele é força vital e espírito ao mesmo tempo.

Falar do amor é como tentar agarrar o vento, por isso eu não queria falar do amor, mas o Amor quer ser falado, porque falar Nele é falar de todas as partes da vida, do acordar à noite, do banheiro à cozinha, do escritório à praia, do céu ao inferno. Portanto, a poesia serve não a mim, mas a Ele — não sou eu a mestra do poema. Assim é que chegar nesta apresentação, ou na necessidade dela, foi um caminho de 5 anos, desde a publicação da 1ª edição deste livro. Chegar a escrevê-la, menos fácil ainda, embora, talvez agora, eu esteja preparada para ela. Talvez.

É como fazer um feitiço a forma como a arte opera. O Saindo da Piscina de Éter foi publicado em 2015; meu primeiro livro e sobre o qual vim a compreender, com o passar dos anos, que foi publicado sem doula, sem parteira e na selva, no meio do mato. Seria o amor assim tão selvagem? O livro não tinha ISBN, não foi para a revisão ortográfica (eu não aguentava outros olhares, tão grande o medo de que qualquer coisa o “abortasse”; e ele não podia morrer, precisava muito existir, e era essa a certeza que eu tinha no meio de todas as inseguranças de autora novata). Amar inclui, especialmente, o imperfeito.

Autopublicar-me foi trazer minhas próprias responsabilidades para pesarem sobre mim mesma. Eu editei o livro, eu o costurei, eu o diagramei. Eu não, a Lua Negra, que talvez seja um Outro Eu meu. O Piscina nasceu timidamente, como que ocultamente, nasceu sem nascer direito. (Como parece-se comigo...) Porém, ficou qualquer coisa retida no útero literário. (Uma placenta?) Sempre me senti diferente em relação a ele, comparado aos meus livros seguintes, sobre os quais sinto-me bem resolvida. Em paz.

Mas no Piscina não havia paz. Nele, eu havia vencido alguma batalha, mas também havia falhado. Quer dizer, talvez não falhado, mas faltado. Faltado qualquer coisa que não “estava” ainda consciente em mim. As poesias existiam, estavam — nada falta na poesia; ela é soberana. Ela é o grito do inconsciente. Ali, tudo está. Não era isso. Passou-se o tempo e, então, descobri o que era. Quem me ajudou foi uma leonina chamada Monique Bonomini.

Faltava uma apresentação. (Outro nome para “elaboração pública”?)

Mas a arte não fala por si? Claro. Pari o que tinha que ser parido. Ao natural. Nada errado com isso. No entanto, elaborações vêm, aparecem, chegam. Passam a existir. O pintor, gravador e professor Sergio Fingermann diz que “a função da arte é a elaboração da sensibilidade para se transformar em pensamento que é o que emancipa as pessoas [...] Há um conteúdo que está além disso, além da emoção”. Entendo com isso que o processo da arte (assim como na psicanálise) fecha fases ao chegar na elaboração. O inconsciente é compreendido, finalmente, pelo consciente. Ouroboros: a cobra morde o rabo. O ciclo se fecha. Um mundo é integrado.

Bem, vamos ao Ouroboros e que a deusa do amor, Afrodite, aqui me guie.

Em 2017 eu já passava da hora de publicar; meus quinhentos e tantos poemas, que começaram a existir desde 2008 (eu já morava nos EUA desde 1999) ardiam por serem organizados, elaborados num livro. Eu não aguentava mais ir a saraus com papéis impressos de última hora na impressorinha caseira. Eu precisava de um livro, essa maravilhosa ferramenta de trabalho da autora. Mas como se faz essa travessia de 500 e tantos poemas para um livro compilado com 30 a 50 poemas?

Eu precisava de guia. De uma curadoria? Depois de alguns pedidos de ajuda frustrados eu encontrei uma alma sensível — e “willing and able” (disposta e hábil), como disse Bob Marley em “Is This Love?” (“Isso é Amor?”) — que sentou comigo, com meus 500 poemas no chão da sala e com algumas garrafas de vinho. Essa foi Maria Lúcia, uma canceriana da gema, dramática, poetizada e sensibilizada. Colocamos mãos às obras: triar 30 a 50 poemas de 500.

Estipulei um sistema de nota: 1, 2 e 3 estrelas. 3 estrelas/muito bom; 2/bom; 1/ok. Munidas de caneta e vinho (e corações ávidos por drama) montamos nesse cavalo de batalha selvagem, o poema. Obviamente foi uma experiência e tanto. Às vezes, eu parava e lia um poema em voz alta. A Lúcia usualmente parava de ler já chorando e dizia, “o que é isto, Ka?!” Foi uma das experiências mais poéticas da minha vida. Ler poesia, com vinho, acompanhada de outra alma sensível é como subir num trem de éter e entrar no mundo por outra via, uma via que não exclui o cosmos entrando junto com você. Parece que se está vendo o mundo de fora e totalmente de dentro ao mesmo tempo. Miolo e casca da vida...

Mas era muita coisa para ler, eram muitas emoções de uma vez e conseguimos “dar nota” a apenas 200 poemas nessa tacada: os mais novos, já que líamos do presente em direção ao passado, dos poemas atuais aos mais antigos. Naquele dia, antes de ir para casa, eu sentei com a Lúcia e me deparei com a principal questão: ok, escolhemos alguns poemas, mas qual é o tema, qual é a narrativa que vai ser contada aqui? Do que estou falando? E Lúcia disse “Ka, você precisa contar o seu momento”. Gelei. Dei logo uma negativa de que não ia falar do meu momento. Nenhum artista fala do seu momento enquanto ele está acontecendo. Quando a arte é produzida, ela é um conteúdo, evidentemente, mas ela nem sempre consegue ser elaborada àquela mesma época. Assim, minha experiência é que quando crio não sei o que crio ainda, em geral. Depois vem a elaboração; às vezes anos depois é que se entende do que se falava propriamente.

Eu não topei falar do meu momento, e ao mesmo tempo, topei escolher 50 poemas dentre esses 200 (em sua maioria, os que obtiveram “nota 3”) e que, no fundo, representavam o meu momento. (Bem-vindos às contradições da artista).

Pronto, ali estava o livro.

Fui para casa, levei a resma impressa com os 500 poemas, mas alguma coisa apitou na minha intuição que me fez ler os próximos 100 poemas naquela mesma noite, os poemas anteriores aos que havíamos trabalhado, e aí algo curioso aconteceu: dentre esses 100 poemas havia vários poemas que “antecipavam” os acontecimentos dos próximos 200 poemas. Como uma profecia que se realizava. Fiquei tocada: o que era isso e como era possível?

Logo pela manhã, levei os 100 poemas “proféticos” de volta para casa da Lúcia e pedi para ela lê-los. Fiquei esperando sentada na frente dela, e não precisei explicar nada, ela entendeu. Ficamos atônitas. Lembrei de uma coisa que o Ricardo Maia, crítico de arte, psicólogo, estudioso de semiótica, havia dito uma vez durante uma fala, “o inconsciente é antecipatório”. Fiz uma ligação para ele imediatamente e falei o que tinha acontecido; ele confirmou a fala dele e aí estava confirmado para mim, também: na ordem em que os poemas haviam sido escritos, os 100 poemas anteriores antecipavam um assunto, um acontecimento, do qual os 200 poemas seguintes falavam claramente, sem que eu soubesse ainda, obviamente, do que ia acontecer. Foi aí que, desses 100 “poemas antecipatórios”, eu escolhi 11, especiais, que eram muito proféticos desse tal “momento” o qual Lúcia me impelia a publicar.

Curioso também era que, a essa altura, o nome do livro era... “Presságios do Amor”. Isso mesmo, nome de novela mexicana. (Não me surpreendo que nenhum edital tenha se interessado). Rapidamente ficou claro também que esse não era mais o título do livro, mas seria o nome dos dois capítulos. O antes e o depois.

Então, Lúcia e eu vimos que esses 11 poemas (“presságios”) precisavam ser anexados aos 50 (“do amor”) já escolhidos. Aqui estavam 61 poemas sobre... o fenômeno do amor em toda a sua alacridade e alastramento pela vida de um eu lírico em busca do que mesmo?

(O que é que se busca, na vivência do amor? Ainda não é hora de falar disso, mas mais abaixo lhes apresento Jacques-Alain Miller.)

Estranhamente, eu havia escolhido este “antológico título” (para não dizer brega), “Presságios do Amor”, antes de descobrir sobre esses 11 poemas-presságio. Não me pergunte como este título apareceu. Novamente, o conteúdo se apresenta e a elaboração vem depois, e se encaixa.

Portanto, se o título havia virado nome de capítulo, eu estava agora sem título para o livro. Novamente, perguntei a Lúcia. Ela nada. Continuamos conversando, debatendo, falando sobre a narrativa do livro. A gente era muito dramática, nos levantávamos, gesticulávamos. A gente vivia a poesia integralmente. Bobas. Já não falávamos exatamente do livro, o assunto já tinha migrado para papos sobre autoconhecimento, sempre em relação às nossas experiências de vida, e foi quando (eu tenho esse momento clicado na minha mente) a Lúcia de pé com os braços no ar disse: “Ka, quando você se mudou pra Seattle, você pulou numa piscina de éter!”

Ela quis dizer que Seattle era um lugar-dormitório, para os zumbis do mundo se recolherem enquanto não acordavam para si mesmos. Não faltava gente perdida por lá que não sabia que estava perdida. Eu uma delas. Fui “descansar” da vida que tinha levado até aquele momento, dormir para não morrer. Me fiz bela adormecida de mim mesma. Quem me acordaria?

Ao redor de 2013 (e depois que o meu mentor espiritual Ken morreu, mas esse é um capítulo à parte) o chamado para “acordar” se intensificou e ele veio como uma urgência de voltar para o Brasil, especificamente, para Maceió. Em 2014 iniciei essa transição que se completou em 2015. Pois bem, os poemas deste livro foram escritos neste período: os “presságios”, do fim de 2013 a novembro de 2014, e os poemas “do amor”, de novembro de 2014 ao meio de 2015, que foi quando vim dos EUA sem passagem de volta.

Novembro de 2014 sendo a virada, o marco, que foi quando cheguei aqui para experimentar um sabático de 6 meses (depois de 16 anos fora do Brasil) e ver se era isso mesmo que eu queria: voltar e morar em Maceió.

(E assim, Novembro foi também o mesmo mês em que conheci... Digamos que Plutão ele mesmo se atravessou na minha frente. Eu, “vestida de vítima, de coitada”, vestida de pato na lagoa, que todo acordar necessita de uma Koré colhendo narcisos afastada do castelo e um vilão docemente perverso e cafajeste, mas sabe-se lá como, igualmente poderoso, e sábio de uma só coisa: Karma; estamos falando de Hades, aqui, não esqueçamos. E, de repente, blup! Um buraco abriu-se no chão e me comeu. Abençoado seja Bernini com sua maravilhosa representação deste momento. O mito de Perséfone existe!)

Curioso é que os poemas “do amor” acabaram de ser escritos ao redor de julho de 2015, que foi quando voltei em definitivo para o Brasil. Ou seja, vida e poesia alinhavam: o tempo dos poemas era o tempo dessa transição EUA-Brasil, 2013-2015. Em 2015, a transição entre países estava completa e o conteúdo emocional relacionado tinha sido todo regurgitado, também. Sem perceber, eu “me acompanhei” em todo esse processo, isso foi a escritura dos poemas. Ou melhor, o meu inconsciente me acompanhou. Essa sincronia só percebi ao organizar o livro, e aí está uma das belezas de publicar: é elaborar, é entender, é dar forma e nomes à experiência caótica do emocional (como fala Sérgio Fingermann).

Como eu ainda estava sem título para o livro, quando chegou a hora de escolher, um pulou na minha cabeça — a deixa da Lúcia — e o título apareceu limpo na minha mente: “Saindo da Piscina de Éter”.

Muitas pessoas me perguntam sobre o título e eu sempre pergunto de volta a elas o que acontece quando, depois de uma cirurgia, a anestesia (o efeito do éter) começa a passar... Elas nunca respondem, mas vejo no rosto delas que entenderam. Acordar depois de uma cirurgia é sempre seguido de alguma dor, que começa a aparecer. Às vezes muita, às vezes pouca, depende do caso. Mas nessa linha de pensamento é inevitável também pensar: é a dor que acorda? Ou é o acordar que provoca dor? Ou a gente acorda para justamente poder sentir a dor? Para sair do zumbi, sair do entorpecimento. Não sei se estou apta a falar de assunto tão complexo. Nós, humanos, que buscamos tanto as sensações boas, o prazer, a alegria, temos dificuldade também com o outro lado do espectro: a dor. Assunto ainda tabu, desconfortante.

Uma vez, ouvi da boca do Claudio Naranjo (um outro bruxo chileno, médico psiquiatra porém dionisíaco) que não sente a dor profundamente não conseguirá sentir, da mesma forma, o prazer. Profundamente. E o que é o profundo? É a intensidade da vida?, como fala Viviane Mosé? Pode um rio sereno ser ainda assim intenso? Afetar e ser afetado? Molhar e estar molhado. Afundar e ser afundado. Subir e conhecer o ímpeto da superfície. Sentir. Estar não-anestesiado.

Seattle, com todo o pacote que foi para mim, amigos, trabalho, casamento, viagem foi, também, anestesiante. No entanto, foi lá que a arte bateu na minha porta, mesmo eu estando “bela adormecida”, ela me acessou por dentro do sono-sonho e me fez trabalhar. Porque a arte tem todos os crachás de acesso, entra e sai como quer e por onde quer... Os poemas que eu já tinha escrito por lá, os 200 iniciais que eu e Lúcia nem conseguimos chegar a ler (depois vi que não eram para participar diretamente dessa experiência do livro) foram, no entanto, a preparação do que viria a seguir para mim: a volta para o Brasil e seus próximos 300 poemas, dos quais 61 viraram esse livro.

E então, Ana Karina, você talvez queira me perguntar, como que esperando desde umas páginas atrás, e fazendo a mesma pergunta que eu fiz a Lúcia: sobre o que é a narrativa desses poemas? A pergunta que eu não queria fazer a mim mesma nem que ninguém me fizesse... Elucidar o que faz um acordar não sei se é possível. Mas, como me disse o Ken, “a gente pode ficar em silêncio, que é explicação para tudo, ou... a outra coisa que a gente tem é a linguagem... então, a gente fala...”

E foi o que decidi fazer nesta apresentação, mesmo com todos o arrodeio. Espero que você ainda esteja aqui comigo.

Uma vez, ouvi da boca do Claudio Naranjo que “o que foi desfeito em relação, será refeito em relação”. Foi o que aconteceu. Um encontro, um drama, uma coisa escrita nas estrelas, a coisa pungentemente patética da qual falou Tetê Espíndola. Um rendezvous, um zeitgeist, um apego, uma fixação, uma coisa passageira (ou assim a gente acha), uma alta, uma euforia, um “eu-vi-jesus”, um fascínio. Em simples vocábulo: um apaixonamento. O que fazer quando as nossas coisas mais sérias nos são apresentadas de forma tão... exageradas, melodramáticas, teatrais. Custamos a ver o miolo da vida que se apresenta ali, tal a mediocridade (ou a degringolação?) e o lugar-comum do que acontece.

Confesso que eu mesma não sabia como me relacionar com esses poemas que se dispõem aqui. Só a quantidade de travessões... (alguém me disse uma vez, “buracos na história”, coisas que não podem ser ditas) salvaram-me e, ao mesmo tempo, olhavam-me lá de dentro de um buraco negro ainda não adentrado. Eu não ousava questioná-los.

Sim, qual caso de amor não é uma experiência plutoniana? Plutão quase nunca é chique, mas é sempre intenso. (Mas eu acho o intenso, chique; confessado). O oculto, a sombra, o tabu da vida. Aquilo que está pateticamente escondido no fundo de nós. Aquilo que a gente acha que não é. Sim, acredito que para todos chega o dia de pular em outra piscina que não a de éter (a feita de abismo, talvez?) como acredito que bem compreendeu Hilda Hilst, a qual teve muito mais coragem do que eu de sair de uma piscina e pular na outra, de boa, plutoniana como ela era. E falar para toda a gente em “Júbilo, memória, noviciado da paixão”.

O que posso dizer? Que esses poemas são o sangue puro? Ah... é patético. O sangue, coisa mais comum na gente, todo mundo tem, em todo mundo ele corre, e se não corre, morre, mas... embora falemos dele muito à paisana, mas quando por um corte na pele ele sai, é trágico, é terrível — a urgência que a gente sente de botar esse sangue de novo para dentro! Para que não se esvaia. Mas não é isso só; é o contato direto com o sangue!, é essa visão dele querendo correr com todo vigor depois da longa e plácida passagem pela dormência do éter. É esse sentir o pulso, o quente, a intensidade de um vermelho quase negro. Isso é o tabu. Isso é o assustador de estar vivo. Um líquido que é o centro da vida, mas que existe por baixo de uma vestimenta. Enfim, o sangue, é para fazer contato ou não? É para tocar ou não? É para falar ou não?

Contato. Este livro é bem sobre isso. Com um Outro. Um Outro que arranca nosso éter particular. Decepção, prazer, não saber, dor. Os tapinhas no bumbum do bebê e aquela primeira respirada que rasga alvéolos necessariamente. O respirar compactua prazer e dor, em sua primeira vez. Este contato profundo com a paixão pelo espelho que é o Outro será dolorido sempre, porque envolve o prazer do sangue que está vivo. (Ah, sinto a Hilda por perto, eu sei que ela sabia disso). Um contato que entrega a alma à matéria do corpo e diz “faça alguma coisa disso”. Despertares não poupam nada, a luz devassa. Uma olhada no sangue custa muito. Geralmente, custa tudo.

Uma entrevista sobre o amor com Jacques-Alain Miller, psicanalista e escritor francês, diz o seguinte:

Psychologies: A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?

Jacques-Alain Miller: Muito, pois é uma experiência cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e frequentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do mesmo estofo que o amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se dirige àquele que a senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira. Porém, o amor permite imaginar que essa verdade será amável, agradável, enquanto ela é, de fato, difícil de suportar.

Psychologies: Então, o que é amar verdadeiramente?

Jacques-Alain Miller: Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à nossa questão “Quem sou eu?”.

*



(Apaixonar é transferir-se, então? Para ver-se? A vida toda num simples momento-pessoa. Disso ou morre-se ou renasce-se, o que é a mesma coisa. Revendo esses poemas 5 anos depois de sua publicação, e embora eu fale tanto sobre dores e perdas, parece até que não há vida neles. E esse é o paradoxo. Dionísio é presente. Percebo neles não apenas dor e violência, mas algo de semente rasgando-se em toda a sua dramaticidade e destruição da casca que aperta. Talvez a semente não perceba a casca como a percebemos de fora, apenas um invólucro limitado, que uma vez rasgado está com os dias contados, em vias de virar comida de minhoca pois ela existia apenas por ser alimentada pelo que estava dentro, a planta. E a planta... é só força de viver. É assim que me sinto ao rever esses poemas: uma revanche de força vital volta e rodeia-me. Então, o eu lírico não estava morrendo? como pensava à época em sua luta cabal com sua casca que deveria necessariamente ser eliminada? Não. Ele estava justamente correndo na direção da vida. Pulsando dor e prazer em todo o seu espectro. Para longe do éter.)


*



Que se veja nesses versos não só um eu lírico feminino lidando com uma contraparte masculina, mas por trás disso, outros eus líricos: a criança, o animal interno, a filha, a menina ou a menina-menino, o bebê, o corpo, os condicionamentos (o ego) e até mesmo o espírito como queira ter se mostrado aqui e ali.

Enxergo, também, que por trás desses poemas está um choque. Acordar pela manhã tem um certo estupor, mas também, dúzias de imagens, impressões, sensações, a primeira respirada. A vida reavendo-se quase que num esguicho, e toda de uma vez. A operada que se acorda tem muitos momentos de apagão novamente. (Como sou grata a Emily Dickinson por me apresentar os travessões).

Talvez eu não possa lhes dizer mais nada. Talvez eu não tenha mais o que assinalar sobre a peritagem de que detém o caos emocional quando suspende sua vítima para a subida na direção da saída da piscina de éter: a dor de sair da água-útero, e já o prazer de andar sobre a mesma água, a perigo de afundar a qualquer momento, e de repente, chegar na borda e está feito.


            - Ana Karina Luna
            Sexta-feira, 13 de Janeiro 2023
            Dia de Vênus