O processo Cartonero é tão belo e há tanto a dividir. Vou tentar dar uma palhinha da ordem das coisas. Bom, primeiro vem o conteúdo, claro: para mim, conteúdo é Rainha. (E digamos que o conteúdo básico vem de todos os meus anos de vida). O conteúdo literário estando em mãos, eu vou para o supermercado. Não, não vou lá para comprar as capas prontas: caixas são o que entra pela porta do meu apê-estúdio-oficina-templo: eu as desconstruo, depois, as corto e separo os lados; depois: dos lados separados, corto a capa, no tamanho preciso; depois: as vinco; depois: desenho, pinto e imprimo cada capa à mão.
Nesse meio tempo, o miolo fica pronto. Essa é a única parte que é feita ao modo industrial, e não artesanal. Quando recebo os miolos impressos, dobro-os para adentrarem a capa. E aí vem a parte violenta, encarno a sanguinária, e furo as capas — com o meu fiel furador, que pertenceu ao meu ex-sogro Jim, do seu jornal no Kansas. O "grand-finale" é a costura do miolo (cheio de poemas e ilustrações!) na capa. O miolo é diagramado por mim, com especial atenção à tipografia. Depois: numero cada original.
O ISBN e código de barras são comprados e registrados por mim. A ficha catalográfica, feita por mim. Depois: o registro na Biblioteca Nacional. Lançamento, papos, autógrafos. Alguém tem que organizar isso: eu.
Não, não só eu: aqui e ali vou pedindo ajuda. Mulheres vêm ao meu socorro. Mãe, amigas. Sou a Lua Negra Cartonera. Sou, mas não sou sozinha. Há mulheres. E é tudo feito entre a cozinha, a sala e o quarto. Às vezes, na sala da minha mãe. Meu carro, participa, de vez em quando. Este é o meu trabalho, meu prazer, minha contribuição, meu passatempo preferido, minha remuneração, meu desafio, meu coração e minhas interações. Assim, estou no mundo. Funciono de um jeito meio delicado num mundo todo concreto e me misturo como posso.
Digo que a Lua Negra Cartonera nasceu de recusas devido às dificuldades no percurso até a publicação. Uma hora, confesso, faltou-me não só a paciência como gritou-me a dignidade e fui à luta. Meu passado de arquiteta, designer gráfica, tipógrafa e artista plástica — além de artesã de longa data (origami, criação de papel reciclado e cartonaria) — me deram os recursos necessários para poder construir, eu mesma, a forma para o meu conteúdo. Costurar poesias, realmente, acabou sendo mais especial do que eu pensava.
A Biblioteca Nacional categoriza o LIVRO CARTONERO como Livro de Artista, para o qual têm um Projeto de Captação. É também chamado Livro-Arte, “Libro-Arte” e Livro-Poesia.
Livros cartoneros são feitos reutilizando caixas de papelão (o "cartón") para confeccionar as capas. O Cartonero é um movimento Latino-americano iniciado por catadores de lixo na Argentina. Editoras cartoneras funcionam num estilo matrístico, seja em mutirão, voluntários ou com um único par de mãos, como no meu caso, mas os princípios são os da cooperação e não-competição. Apenas para o miolo é que são usados métodos modernos — um dos presentes do patriarcado: a impressão. Os livros são vendidos a preços justos e recuperam a autonomia da escritora. Assim, eles são "disruptores" da ordem vigente de publicação (que tende a dar mais oportunidades a escritores homens). Estes livros são feitos inteiramente à mão por uma mulher em sua casa-atelier-templo.
"Primeiro em Buenos Aires, depois se espalhando para o Peru, Bolívia, México e Brasil, surgiram as editoras cartoneras que, resgatando papelão corrugado de embalagem usadas para fazer suas capas, acionaram uma importante série de livros de boa qualidade literária. Livros cartoneros falam da sobrevivência da leitura e da descoberta e 'nutrição' de novos leitores às margens da sociedade; um todo, nascido da necessidade."
- sinopse do livro "Akademia Cartonera: uma Cartilha dos Editores Cartoneros Latino-americanos"
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Lua Negra Cartonera é a experiência de um feminino sobre "outros possíveis". Achar um novo ponto zero. Andar para o começo e experimentar voltar por outro caminho. É a carta do Louco, onde menos é mais, no pulo do abismo.
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Afinal, na nossa direção,
uma água turvo-índigo, vinda do crepúsculo,
rajada de partes ainda puras,
como os azuis claros na henna indiana,
como saias duplas
de pedrarias turquesa —
imensa e tortuosa, ali a meio-mar,
cresce, a nossa imaginação.
(do livro "Maluquete Quer Dançar")
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