ENSAIO

DESACREDITO
por Ana Karina Luna


Todo mundo tem um momento na vida em que não acredita em quase nada. Será? Todo mundo? Se tem, chegou a minha vez. Estou nessa hora, que jamais pensei que chegaria para mim. Digo jamais porque eu acreditava em tudo — tudo ou muita, muita coisa — e eram tantas opções para acreditar que nunca achei que isso pudesse expirar assim, do nada.

(Ok, eu sei que não foi do nada, mas foi assim negócio de 2 anos só — a pessoa passa 48 anos acreditando em tudo e, de súbito, passa a não acreditar em nada... digamos que é como se o coração mudasse de lado, ou se virasse de costa no peito).

Será que acreditar era continuar? Olha, se o poeta não acreditar em absolutamente tudo, a carruagem dourada não anda. Porém, não foi desde sempre que eu compreendi que eu sou da imaginação. (Espere, deixe eu dizer de novo porque perdi muito tempo sem dizer: Eu Sou da Imaginação). Quem é da imaginação tem que acreditar em tudo, senão perde muito. Perde de ver muita coisinha. E quem não acredita em nada não pode ver a imaginação.

Então, você veja a minha situação neste momento. Sou poeta e não acredito em nada. O que será que vai acontecer comigo?

Por enquanto, tudo o que repito para mim mesma é: mas eu sempre acreditei em tudo. Sempre, sempre, sempre. Sem chance desacreditar. (Então, como é que isso foi acontecer. jesuis?) Desacreditar seria cair para o centro da terra, como o Júlio Verne (caiu). (Será que ele caiu? Não sei ainda). Eu nunca li esse livro, “Viagem ao Centro da Terra”, está no meu Kindle, para eu ler, se não me engano. (Eu vou angariando livros e juntando no Kindle, uma hora eu leio, porque se não fizer assim depois eu esqueço deles e nunca chego neles.) E eu aqui citando livro sem ter lido. Está vendo porque não acredito mais em nada? (E nem estou no Instagram, estou no meu próprio Blog).

Pois é, agora mesmo, estou escrevendo isso aqui e já estou começando a não acreditar em nada disso. (Como é que eu sei que tudo isso é verdade? Que não é balela da minha cabeça? Que não é marketing?) Até nas palavras meu-deus, até nas palavras eu não acredito mais. Como isso é possível?

Eu culpo o Instagram.

Foi há uns quatro meses que isso eclodiu. Eu olhava para o Instagram e não acreditava em nada. Pior: acredito que eu já andava olhando os quadradinhos no Instagram e balançando a cabeça fazia muitos meses, e não tinha percebido. Não tinha percebido o que já acontecia ao redor do meu coração: uma possível morte da imaginação. Meu-deus, tenho até medo de pensar. Nisso. Isto é, eu mentia para mim mesma de que acreditava no Instagram, e também eu não acreditava que não acreditava. Eu acredito que foi assim que aconteceu. Eu tenho mania de escrever InsTRAgram. Sempre sem querer, mas acho que no fundo Freud explica. TODA vez eu escrevo assim e tenho que voltar e apagar, e novamente continuar. É, talvez não foi o InsTRAgram que instragou tudo, mas foi nele que eu percebi que estava tudo instragado.

Mas... como foi mesmo isso? É, eu acho que eu negava. Eu rolava e continuava rolando a tela do celular para ver se aparecia qualquer coisa que confirmasse uma ou outra crença dentro de mim, confirmasse uma afirmação bem positiva e polyannamente dentro de mim, mas, os óculos, os óculos cor-de-rosa já estavam rachados. Até que... acho que foi em março desse ano... eu caí do Instagram. Caí no chão. Como Júlio Verne caiu para dentro do centro da terra (não é errado dizer isso, mas eu já disse eu não li o livro ainda; antes de ler, você sabe, é normal essas imaginações, sobre o que vai acontecer no livro, depois não acontece nada disso, mas não me tirem ao menos essa possibilidade ainda de me permitir imaginar qualquer bobagem que não esteja à altura de Júlio Verne).

Então, foi em março: é mentira, é mentira, eu repetia um pouco irritada, um pouco desesperada (mas disfarçava), um pouco “eu não disse a você?”

Bem, essa que disse “eu não disse a você?” foi quem sabia que era tudo mentira, mas eu não queria que fosse mentira. O Instagram, o Facebook, a internet. Etc.

O marketing eu já sabia que era mentira; fazia muito tempo que eu sabia; ah todo dia eu vomito um pouco nele, quase todo dia. No marketing. Como um fetiche. Ou uma punição, por ter tido que trabalhar como... olha não vou nem falar para não apertar a minha sorte contra a parede. Deixa pra lá. Num texto sobre descrença, mentira e marketing, talvez omitir alguma coisa pra não cair em hipocrisias seja a mais honrada das coisas.

Acontece que eu aprendi que o marketing era mentira nos EUA. Só vou dizer até aqui. (Meu irmão se estivesse aqui me corrigiria: marketing não, publicidade.) A ‘publi’ é mentira também. Sim, sim, eu sei a etimologia do vocábulo, você acha que não tentei salvar o marketing de todo jeito? Ora, eu trabalhava lá dentro. Já cheguei a pensar: o marketing não é mentira. Eu tinha que pensar assim para produzir. Eu sei que marketing quer dizer “levar para o mercado”, sim? Pois é, pois é... para o meu desespero eu fiquei com alergia até de feirinha de praça... horrível esse processo de descrença, horrível.

Nunca pensei que passaria por isso. Desacreditar das coisas.

Nesse processo, também vi outras coisas estranhas, quer dizer, curiosas: enquanto eu acreditava nessas loucuras todas aí, eu me lembro bem, ao mesmo tempo eu fazia o caminho inverso: eu não acreditava muito em mim. Quer dizer, estou até pegando leve. Eu não acreditava quase nada em mim. Achava aquelas granduras do lado de fora de mim maravilhosas. O marketing, a internet, o Facebook, o Instragram, o YouTube. Deuses. E eu súdita. Será que eu chego lá? Lá onde? Não sei... não sei onde eu achava que iria chegar com relação a esses “deuses”. Me esclareçam um detalhe: não tem uma coisa que eles, os “deuses sociais”, fazem a gente acreditar que vai rolar alguma coisa a mais? Que vai acontecer algo grande ou coisa boa? Eles não exatamente dizem diretamente “ó, vou te levar pra Lua, gata-designer”. Ou pra Vênus. Bom, Elon-O-Louco-Musk falou em Marte. Mas, enfim, não fica sempre algo nas entrelinhas, como se houvesse uma promessa?

Caiu uma ficha enorme agora! Eu já tive meus encontros com os narcisistas doidos e sei de umas coisas, e não é que tive um déjà-vu agora?

(As ironias: neste exato momento de descrença, vem para mim uma verdade. Ah! Vou inventar um ditado, já que é tudo inventado mesmo — “desacreditai para acreditar”. Será? Soa bíblico. E eu boto fé... Fé? Ah! Que sossego seria.)

Então, eles, os narcisos, fazem o mesmo jogo: não dizem exatamente, diretamente, o que vão lhe dar, ou o que vão lhe proporcionar, mas sugerem uma série de promessas. Assim: digamos que você esteja num relacionamento amoroso com eles — então, o narcisista não diz “eu te amo” ou “quero ficar com você”, eles dizem “temos um longo caminho pela frente”. Aí você pensa, na sua (minha, nossa) infinita carência e crença no melhor, “ele/a não disse ‘eu te amo’, mas vai dizer porque já disse que ficará comigo por um bom tempo”.

Sim?

Vamos com calma. Observe essa construção literária: sugerem promessas. Entende? Faz vergonha até explicar o que sugerir uma promessa é ou pode chegar a ser.

Pronto, eu agora acho que o Instragram, especialmente ele, sugere váááárias promessas. Diga aí, sugere ou não sugere? Diga aí se você não fica sempre com uma impressão que na próxima rolada de dedos vai... acontecer... algo... bem... legal. Sim? Mas não acontece, aí talvez na próxima. Não ainda, depois na próxima. E na outra. Mais na da frente, na próxima, na próxima, na próxima, na-próxima na-próxima na-próxima-na próxima-na-próxima-na-próxima-vai-vai-vai-vai-vem-vem-vem.

Ai como eu adoraria uma palavrinha do Freud sobre o Instragram. O que ele diria? Codependência? Eu queria ouvir uma palestra do Freud sobre o Insta.

Então, eu culpo o Instragram por essa caída de crença minha. Mas eu sei bem que, no fundo, não foi ele porque ele não é nada. Ele é o próprio óculos cor-de-rosa rachado. Pelo qual eu via através, mas de repente, vi o trinco, e vi vários — eu acho que vi todos. E com isso vi todas as sugerências de promessas que jamais se cumpriam, uma depois da outra, ad nauseam ad infinitum.

Portanto, eis a minha situação. É 2024, e eu estou assim que não acredito em nada: nas redes, nos anúncios, nas falas, na maioria dos livros, nos quadradinhos do Instragram, não consigo acreditar nem na rolada que o dedo dá, e olha que essa parte é real, — mas não tem parecido, e tenho duvidado que realmente acontece: é a gente que rola, ou o negócio rola sozinho? Não acredito nas oficinas, nos workshops, nos pacotes, nas aulas e no aulão, nos cursos, nos 3 dias de graça, nos 7 dias de graça, no link da bio, na controvérsia só pra juntar comentários (“Vamos trocar uma ideia sobre algo que eu não acredito?” “Booorraa, pois adoro falar de nada!”), nos lançamentos (saca o que é lançamento no Instra, sim?), nas músicas que tocam nos quadradinhos, nos comentários, em deixar ou ler comentários, não acredito quando me dizem que o Facebook não existe mais e nem quando dizem que ainda existe. Não acredito nas hashtags, funciona? Tráfego pago? Já tentei, tem que ser cientista de foguete pra sacar como se usa, minha cabeça queria virar para as costas. Parabéns aos gênios que conseguem usar. Mas também não acredito em gênio de Instragram, nem gênio de marketing. (Cada sinônimo que se arruma para ‘enrolada’ que eu nem sei, viu?) Vender, enrolar, contar sugerências, prometer conselhos que não funcionam nem na vida do enrolador. Não estou conseguindo acreditar. Não estou conseguindo acreditar. Não estou conseguindo acreditar. Meu sistema de crenças surtou.

Aí a outra ponta dessa polaridade: acredita que eu nunca acreditei tanto em mim mesma? Sim, essa pessoa que dorme comigo na cama. No que ela pensa, no que sabe, no que vê, no espiritual dela — e na Arte com A maiúsculo, Há, sim, algumas poucas situações onde eu sinto um ar claro, lúcido: quando medito, quando ouço tigelas de cristal, na frente do mar, olhando em alguns olhos, em certos abraços, quando sinto o vento, ouço passarinho, percebo a luz do sol na minha janela onde tomo café todas a benditas manhãs neste planeta onde cresce uma erva daninha da qual, de súbito, me dei conta. Mas não sei se acredito muito no café preto e sem açúcar que tomo (pois os melhores, o Brasil exporta). É marketado, ele diz mentiras na embalagem. Mas acredito na comida que cozinho, em sua maioria; acredito na terra de onde ela é tirada e que ela vem pura de Gaia. Sem enrolação. Não vem instragada.

Finalmente, agora acredito no que vejo: eu acredito na mentira. Entenda: eu não acredito no conteúdo que dá forma à mentira. Eu finalmente acredito no ato dela. E ela atua, entre nós. Que a mentira realmente existe e é absolutamente conspícua ao se esconder à luz do dia, pendurada nos corpos, nas roupas, nas maquiagens, nas gravatas, nos cabelos, nos saltos, penduradas nas casas, nos objetos, nos carros, até onde não deveria, no ato, no gesto, no riso, no “não-saber” e nas boas intenções; até nas mãos, as belas mãos, tentam escorrer a mentira, balançam para ver se ela cai para o fundo da terra para ser lavada pelas forças escuras do fundo da terra, as únicas forças que poderiam derrubar a mentira: as forças do instinto no fogo de Gaia. E finalmente até na palavra, a divina palavra é usada e abusada pela mentira — a palavra... a mais fácil de ser manchada, tão fácil — como é rápido dizer uma mentira, inverter uma verdade — e essa descoberta foi uma dor e surtou minhas crenças.

Pior é que eu descobri que vi isso o tempo todo, desde pequeninha — havia um terceiro olho que tudo via e que tudo percebia, até além da conta do que ele mesmo aguentava — e a dor foi tão grande de ver a bagaceira que eu não quis acreditar na mentira. Na sua existência. Sim, me analisem: “ah, não aguentou a frustração de ver o real”. E então! Totalmente! Assim foi que eu passei a acreditar que a mentira era uma verdade, para doer menos. (Que eu é que não estava vendo direito, e que ao dizer “não acredite no que você , menina!”, danifiquei-me.) E logo depois disso, eu me recolhi para um mundo de imaginação, ao menos para viver num reino que parecia o mesmo da mentira — mas que não era de jeito nenhum. Ali eu dei um nome melhor à mentira — se for pra viver na mentira, prefiro o mundo da imaginação — e fui viver minha vida, e deixei a “verdade” reinar do lado de fora, também com um nome bom. Tudo resolvido. Daí eu consegui sobreviver até onde cheguei hoje. Consegui sobreviver sustentada pela “mentira” dos livros, da palavra que conta, da história e da memória, de algumas cores e riscos e formas que eu tinha na cabeça. Convenci a mim mesma de que eu é que não estava vendo a coisa corretamente. Que um dia tudo ia se alinhar, fazer sentido, e que ia ser ainda mais bonito ainda.

Mas... não foi o que aconteceu. Não ficou mais bonito, não.

Dia desses me veio uma frase: “o instinto está tão amordaçado que nada pode fazer [contra a mentira]”. Instinto, o grande incorruptível, tem sido tão desonrado. Ainda acredito nele... não posso deixar de acreditar porque ele não me deixa, dia e noite, o instinto faz vigília embaixo do meu pé, do lado das minhas ancas, no topo da minha coluna ele abanca-se como um rei, ele também esquenta algo na minha garganta, e jamais sugere a minha língua: apenas direto entrega-me a palavra sem promessas prévias... e todo dia me deixa engolir coisas gostosas.

Mas o que pode o instinto amordaçado por mentes pensando e falando sem parar e sem saber? Agora, como eu a vejo, e como dói. Mentes e suas mentiras. Não é uma decepção?

E nesse exato momento em que vejo isso, surge o AI. A fábrica da invenção. Ele parece, para mim, ser o ápice da fábrica do inverter-se, da inversão, que começou lá no começo do aparecimento da mente. E aí, AI = é ou não é? Foi ou não foi? Será ou não será? (Quem sabe não seja mesmo o AI que, por ser de mentira, agora, de verdade, nos salve: ah ficará claro, agora ficará claro!?)

Pois é, minha cabeça... tu que é feita de imaginação e medo, agora nessa minha descrença toda, nesse novo eu-descrente que sou, me apazigue, minha cabeça, me dizendo que ainda existe um lugar de fogo, que ferve para se manter translúcido, e que eu acredito que fique no centro desta veramente terra que nos observa há milênios. Do meio do fogo, a terra olha para gente com olho de instinto, que é o único lugar onde a mentira não pega — no olhar — na entrada da alma — e de lá nos observa, o centro da terra nos observa, e nos vê como somos, provavelmente com pleníssima compaixão — a qual não tenho já que sou uma decepcionada e uma descrente. Lá do meio do fogo do centro da terra, eu acho que a terra nos enxerga em nossas próprias bilhares de camadas de invenção e mentiras. Que vergonha ser vista assim pela terra, mas é isso o que somos agora, e que dor, que tristeza, que vontade de chorar que invertemos até mesmo a imaginação, esse lugar sagrado, que temos usado para inventar... não sonhos bons, não utopias funcionantes, não paraísos, mas... mentiras. Pequenas, médias e grandes — independente dos seus tamanhos, sempre instragadas.

O que será que Júlio Verne sabia? O que será que ele viu quando olhou de volta no olho de instinto da terra, lá no centro da terra?

...

(Para escrever isso, eu tive que acreditar na escrita — por isso, ó bela, obrigada. Também agradeço ao Instragram por exagerar tanto que eu pude ver.)


Maceió, 26 junho 2024.

Mulher-Vinho
Mulher-Vinho. Colagem. Maio/24