Essa não é uma resenha, é um comentário inicial. Quem estiver lendo ou for ler o livro, pode ao menos observar se percebe também o que percebo. Já notei que em minhas leituras, capto inúmeras questões sutis, especialmente relacionadas a outras lógicas não tão conhecidas ou não-convencionais, mas válidas e existentes, e que não ficam sempre aparente a todos. Geralmente, depois que comento sobre elas, as pessoas dizem "ah, faz total sentido!" Pensei bastante antes de escrever, eu não ia fazer esse comentário, pela simples razão de que evito fazer críticas porque tudo é difícil na vida, e é muito fácil apenas ficar criticando, mas nesse caso, o tanto de notas que já escrevi ao ler o livro me convenceu de que eu deveria colocar minha opinião.
Em "NEXUS: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial", de Yuval Noah Harari, sinto muita falta de uma visão metafísica. Sim, eu sei, Yuval é historiador. No entanto, sou da opinião que disciplinas podem e devem se misturar (não sou escritora e artista visual e oraculista e pesquisadora e terapeuta?) — não há razão para ficar só em Apolo, ou só em Dionísio. A análise de Yuval falta multidimensionalidade. Então, querer multidisciplinaridade, seria pedir demais? Será mesmo? Será que já não está na hora de olhar para ver com mais dimensões — e especialmente a espiritual? Sendo complexo, o olhar espiritual, profundo, pode conectar mais pontos. Será que não é hora, e a hore é 2024, de alcançar outras sutilezas informacionais nos temas, como por exemplo, através da visão metafísica. Um historiador poderia, facilmente, ter uma pegada filosófica, claro. Mas, ok: ele só pode fazer até onde faz sentido para ele, óbvio. Aceito isso. Bem, o resultado é que, em muitas partes do livro, dá até agonia de ler: a versão que estou lendo no Kindle já está entupida de notas minhas, onde registro meus questionamentos sentindo falta de amplitude nos sentidos, e, tristemente, até conclusões errôneas, incompletas ou superficiais.
Yuval parece guiar-se por sua cabeça extremamente racional, embora sua pesquisa seja boa, ou muito boa, o problema é na hora das análises e das conclusões a que chega. Além disso, há também umas ironias estranhas que ele faz aos artistas. E como a Arte lida com dimensões bem complexas, inclusive com o não-saber, talvez isso seja difícil para uma cabecinha muito racional? (O interessante é que ele revela que medita duas horas por dia, porém, já vi muitos casos de pessoas que meditam justamente para ver se conseguem se livrar do excesso de racionalismo. Fico pensando se seria o caso dele...)
Numa parte, ele passa páginas explicando porque listas são necessárias, defendendo o trabalho do contador ou do historiador (ele mesmo = aquele que "organiza a informação") — porém, termina transparecendo o que eu só pude identificar como uma certa inveja?, já que a comparação que ele faz é inútil (e materialista) — talvez porque enquanto ele apenas organiza, o artista produz informação original, ou seja, cria — e assim, Yuval termina fazendo uma oposição, a meu ver, desnecessária, à maneira do artista atuar, dizendo que "muitas nações foram primeiramente concebidas na imaginação dos poetas" — o que atesta do poder real e criador do sonho e da utopia, e com o que acredito que ele concorda, por isso mencionou — mas para depois adicionar "uma igreja, uma universidade, ou uma biblioteca que queiram organizar suas contas logo percebem que, além de padres e poetas que podem hipnotizar as pessoas com histórias, precisarão também de contadores que entendam do mundo das listas."
Não entendi o que tenta provar. Eu entendo que cada um no seu quadrado, e com o seu valor. Misturar poetas com padres foi estranho —, ainda se misturasse com Místicos, não seria tão ruim, pela dimensão espiritual que a Arte tem. Mas é como se ele não compreendesse isso e inferisse que espiritual é sinônimo de não-realidade, de hipnose? É o que ele imputa ao chamar os poetas de hipnotizadores, palavra, que em nossa cultura, tem uma conotação de manipulação (e que realmente é o que muitas religiões fazem, incluindo a tal da ciência que é um tipo de religião, já disse Ailton Krenak, as duas, religiões e ciência, se passando por verdades, mentem, confundem, hipnotizam; enquanto a Arte é muito mais real, pois não se coloca como verdade, mas como ficção, e cada um que tire suas conclusões, como puder). Porque Yuval joga tudo no mesmo saco? Só posso pensar que não compreende as coisas tão bem, então. Não vê tão profundo. E o que ele acha que poetas e artistas fazem, então? Truques? Enganam? Confundem? Mágica? Ou será que ele tem a noção errada do que seja a magia? Foi aí que vi que ele compartilha da ideia errada sobre Arte, e desenvolvida pela mente racional: como algo não-real, apenas entretenimento, sem fundamentação, brincadeira de criança. Uma hipnose, e não uma clareza. Desejo mais Walter Benjamin no caminho dele.
Pense na decepção: agora entendi porque nunca me senti atraída pelos outros livros dele (Sapiens & etc.), e estou lendo esse apenas porque uma pessoa que confio o mencionou para mim. O assunto (informação) é uma das minhas ferramentas trabalho, umas das minhas missões — amo —, mas está difícil... nesse livro. Falta insight e certa sabedoria. E por isso sobra medo e muitas dualidades mal resolvidas nele.
Será que Yuval tem uma briga entre Apolo e Dionísio dentro de si? Bem-vindo ao resto de nós, então, sim? Voltando ao episódio onde depena a Arte, no final dessa parte, ele se dá conta de que os dois precisam existir, mas durante a comparação (desnecessária), termina deixando transparecer um certo descarte da Arte, da intuição, do poder do espiritual — joga a Arte várias farpas (tem mais exemplos, viu?) e tece comentários irônicos a artistas e poetas. Achei bizarro, e percebi que, no fundo, ele não tem tanta percepção de coisas sutis assim.
Isso também se reflete em uma de suas entrevistas (eu vi várias!). Geralmente, ele consegue responder tudo com celeridade, se foram coisas sobre as quais ele já pensou no livro, mas houve um entrevistador que fez uma pergunta nova, e a cabeça do Yuval deu branco. A pergunta não era tão difícil, mas era criativa. Ficou claro que o Yuval poderia ter respondido se ele tivesse usado a intuição, e eu achei que ele ia entrar por aí, mas ele só disse "tenho que pensar sobre isso". Tudo bem, não vou enforcá-lo, cada um tem seu jeito de processamento, mas eu acho que o dele é com o pé no acelerador do racional, o que obviamente vai deixar a descoberto um montão de informações boas, pertencentes a outras lógicas melhores ainda. Por exemplo, e o que o instinto dele dizia naquela hora? (O meu falou logo, ahah). O dele, acredito que ele não conseguiu acessar. Talvez porque ele ache que informação é apenas algo externo, só o que é 'pesquisado', ou pensado a partir de fatos — e essa é uma visão materialista da vida, e que sabemos agora, problemática, pois elimina outras visões distintamente sábias e necessárias, como a dos sentidos internos, como a dos sonhos — e os povos originários sabem disso —, é essa visão materialista que nos colocou nesse grave impasse do momento, ao não ver como emoções, intuições, instintos, inspirações e sentimentos podem ser condutores de outros tipos de informações, bem mais complexas, e bem mais amplas. E desesperadoramente necessárias neste momento de insustentabilidade na terra. Eu não esperava encontrar essa lógica ainda tão materialista no livro do Yuval. É uma pena.
Com relação a essa pergunta que foi feita a ele, eu mesma respondi, em casa, para mim mesma, o que o apresentador perguntou, apenas conhecendo as informações que o Yuval já tinha explanado sobre o tema. Ou seja, as informações dele são boas, servem, mas é preciso saber relacioná-las dentro da gente. É preciso fazer NEXUS dentro, por assim dizer. Assim, o próprio Yuval não conseguiu usar as próprias informações que ele desencavou através da própria pesquisa para pensar algo novo, que foi proposto na hora. (Quem sabe ele não poderia levar um poeta dentro da bolsa dele, para quando criar novos mundos for preciso, bem no meio da entrevista. Para quando um utopizar for necessário.) De certa forma, ele provou o próprio ponto: raras são as Informações (qualquer pensamento, verdade ou não) que evoluem para virar Conhecimento (pensamentos que sirvam para alguma coisa útil, especialmente se for para melhor) e, a partir daí, transformar-se em Sabedoria (conhecimento que produz um sentido profundo no indivíduo, que é quando a Informação que vem de fora encontra a Intuição no interior do indivíduo).
Ah, tem outro exemplo bem interessante: quando perguntam a ele o que as pessoas devem fazer, ele diz que não adianta fazer nada sozinho, que as pessoas devem se juntar em grupos, e que um grupo de 50 faz mais do que 1 pessoa só. Entendo o que ele quer dizer, talvez que as pessoas devam se movimentar? Mas é uma pena ele desempoderar assim o indivíduo (tão estranho isso nele) e, de certa forma, descreditar o que cada um pode ir fazendo sozinho, sim — começando dentro da própria casa, e consigo, com a criação dos filhos, etc. Pois eu sei, por tantas outras lógicas mais largas que a lógica materialista, que tudo precisa mudar no individual, e a partir dali tudo muda no coletivo. Porém, a cabeça materialista não consegue ver o "dentro", já que ela vive "fora" (da cabeça para cima), no externo — como vive um falo, que tem medo do escuro, mas que não tem opção, pois para criar há que entrar na escuridão — portanto, a cabeça materialista acha que não dá pra fazer nada sozinha. Quem lida também com o 'interno', eu e tantos outros, sabe que o caminho não é assim, apenas externo, apenas no mundo. Inclusive, Yuval termina se contradizendo, coisa que faz várias vezes no livro (como a lógica dele, perdão dizer, é fraca em alguns temas, ele dá voltas e voltas neles). Isso é patente quando, logo após recomendar que "juntem-se em grupo", aponta que o problema só vai ser quando ali surgirem as conhecidas questões dos egos, e que os grupos vão ter que resolver isso também, sob pena de não conseguirem fazer nada — eu só tive vontade de mandar um "mar-né-isso-mininu?" — e assim, ele volta para o mesmo lugar onde já estamos: com o tanto de instituições e "ordens" externas que colocamos no mundo (política, governos, leis, corporações, associações, igrejas, escolas, universidades, etc., etc., etc., ad nauseum, ad infinitum), porque, porque, porque, não há mais sabedoria? Se é no grupo, como ele diz, que conseguiremos mudar o mundo?
Mudaremos o mundo juntos, mas não sem passar pelo indivíduo. (Que é o que todo mundo evita a torto e a direito. Até Gaia falar, né? Até Zumbi chegar, né? Até o apocalipse esquentar. Ou congelar a gente.)
Ou melhor, o mundo, no fundo, no fundo, no fundilho da história toda... não muda. Quem se transforma são as pessoas. E quando elas se transformam, seja em que porcentagem for, isso manifesta no mundo, na mesma medida. Simples. Mas não é simples para uma cabeça materialista, que acha que tem que fazer coisas no mundo para que as coisas endireitem (com trocadilho e tudo!)
Você vai dizer "ah, mas e as leis?". As leis como sabemos, "funcionam" e não funcionam. Funcionam, se tiver alguém olhando, monitorando, vigiando e punindo. Se não tiver, a gente sabe que o humano acha jeito de burlá-las. Quem segue a lei, não segue tanto apenas porque não quer ser multado ou preso, segue porque tem também um certo compasso moral ou ético. E quem não tem, não tem lei que dê conta. As cadeias que o digam. A lei é um acerto coletivo, e isso é ok, fazer esses acordos (mas não precisa ser LEI imposta pelo governo — exemplo: se eu sei que preciso reciclar, começo sem ter lei mesmo, sigo uma retidão interna). Muitos a seguiriam dessa forma, apenas por isso: seriam fiéis ao acordo, sem necessidade de ameaças, multas, punições (embora a gente tenha sido convencida que não, que somos doidos, perigosos, que alguém tem que tomar conta da tente). Outro exemplo: no prédio em que moro, pagamos condomínio, sim? Não há lei que obrigue ninguém a pagar, tanto é que há os que não pagam, só que esses são minoria, de 38, 1 ou 2 só não pagam. Inclusive a lei está do lado deles, não nos deixando botá-los pra fora, nem os cobrar. E como é que se explica que a maioria paga, então? Vergonha na cara? Ou, melhor dizendo, um mínimo de moral? E nos melhores casos, de ética? Portanto, não é que as leis não servem — elas organizam enquanto esperamos a transformação de todos chegar — mas elas são superficiais, não fazem mudanças profundas porque são demandas externas, e a transformação, diferente da mudança, é um processo interno, é sobre uma demanda interna. Assim, temos que ver as leis como uma fase paliativa dentro da evolução do ser humano. Elas não transformam, mas resolvem por ora. Pois onde tem lei, tem que ter um vigia. Todo prisioneiro tem um carcereiro. (E se o prisioneiro tivesse um Mestre, seria mais rápida a evolução, mas cadê o Mestre, se tudo é feito no "externo"? Quem é Mestre? Os políticos? A classe mais baixa que existe, em todos os sentidos?). Óbvio que o mundo não quer ouvir que lei não é a solução, porque as pessoas entram em depressão. A lei é um puxadinho. Até a casa ser construída.
Assim é que Sabedoria é algo que é alcançado individualmente, pois é da ordem do interno, do espiritual, e depois, então, é aplicado ao grupo (ao coletivo). Informação é superficial e é da ordem do coletivo. E Conhecimento está entre Sabedoria e Informação, ou seja, é uma ponte do coletivo ao individual, e vice-versa, pois, como eu disse acima, Conhecimento é uma Informação que ganhou um bom uso para si. E Sabedoria, portanto, é Conhecimento que criou Sentido, símbolo, que é a marca do divino em nós, e assim, é profunda e espiritual — e essas dimensões são alcançadas individualmente, cada um no seu escuro. O coletivo apenas se beneficia disso, no tempo certo. Mas como as transformações internas são da ordem do invisível, as pessoas se enganam achando que foi algo no externo que fez aquilo acontecer. Aí vão fazer correr todo tipo de estatística para "registrar" que fórmula foi esse, meu deus do céu?
Por isso, a recomendação do Yuval de "se quiser fazer alguma coisa, faça em grupo", parece muito bonita, muito lógica, mas não exatamente funciona do jeito que ele acha, ou que se acha, porque é uma visão superficial de como funciona a vida. O grupo é sábio à medida que seus componentes são sábios. E esse é um erro materialista, de que podemos escapar ao confronto com nós mesmos, e de que podemos solucionar/mudar sem crescer, sem nos transformar. Isso é um oximoro.
Ainda assim, respeito a coragem de Yuval e sua energia para topar falar de um tema tão complexo. E esse comentário-ensaio informal aqui talvez não existisse nesse formato, e desse jeito, se não fosse o livro dele. Portanto, não pode ser crítica, tem que ser comentário.
Mais duas coisas:
A primeira, não batam em mim, por favor: ainda não terminei o livro, e meu natural é esperar, mas estava difícil, e eu tive medo de perder os insights já ganhos, mesmo anotando tudo, tem a energia do momento que não pode ser perdida. Já fiz isso de esperar e depois termino não escrevendo, porque outras coisas mais importantes chegam na minha frente, e comigo isso é uma dúzia de vezes ao dia. Além disso, foi uma enchente anormal de informações que me veio. Tive que parar o livro, inclusive, para digerir minhas próprias ideias a respeito, cheguei a ficar tensa: para quem lida com lógicas complexas, é muito difícil ler um livro onde a lógica é trocada a cada 10 parágrafos, e você fica ali experienciando aquela loucura toda. Os downloads se multiplicando... enfim, sobrevivi e sobreviverei até o final do livro, e espero que seja mais calmo daqui para frente, mas talvez não seja. Se necessário for, não terei problema algum em revisar esse texto meu num futuro próximo, se por acaso houver mais que precise ser adicionado ou mudado. Ou se eu perceber que errei. Na verdade, para mim, é muito mais extático ler um livro sábio, e tão dolorido ler um livro com muitos enganos, ou medíocre (que ainda não acredito seja o caso desse). Eu prefiro a primeira experiência, vibrar com ideias profundas é um prazer eterno, para mim. Então, resisti bastante antes de partir para fazer esse comentário. Espero realmente que isso não continue no resto do livro, e que soluções reais e sábias possam estar por lá. Mas, se não, eu compreendo que esse assunto sobre a Informação (e a IA) é importante, portanto, prezo a tentativa do autor de Nexus.
A segunda é que tive que juntar coragem para aceitar escrever um comentário sobre o livro de um homem que já vendeu 45 milhões de livros em 65 línguas, e que é considerado um dos intelectuais que mais influenciam o mundo de hoje. Sei muito bem como tirar benefícios e aprendizados de quase todas as situações — como artista, esse é o meu caminho de vida, meu estilo de ser, experimentar(-me) e aprender(-me) é minha missão — assim, posso dizer que tem sido benéfico para mim me inspirar na coragem do Yuval Noah Harari de colocar o que ele pode colocar, mesmo que nem todos concordem. Sou grata a ele pelo exemplo, e isso me ajuda no caminho da recuperação da minha autoridade como pessoa que pesquisa, estuda, pensa e escreve. Diariamente.
Maceió, 29 setembro 2024.