CONTO

NOITE DE SEXTA
por Ana Karina Luna


O trânsito nas ruas não estava tão ruim quanto ela imaginou. Ela dirige numa lentidão não usual, despreocupada com os outros carros. É bom ter um carro. Guiar uma máquina — só sua. Ao menos isso. Agora a vida flui: na pista de asfalto, pela qual ela também flui, sentada em cima de uma cadeira de onde dirige um motor 1.6.

O carro é branco, mas tudo dentro dele é negro. E no corpo dela que senta no carro ela sente esse decorrer, esse fluir de um tempo que corre por cima da pista de asfalto junto com ela, ela amparada por essa cadeira que também corre, colada nela, embaixo dela, a partir da qual — parecido com uma pianista que apenas foca nos pedais embaixo do piano — ela coordena as marchas desse motor que chega nos lugares ligeiramente antes dela, levada pelo tempo da pista de asfalto que corre parada por baixo de tudo.

Sentada em cima de um motor 1.6 ela sente a tranquilidade do seu corpo dirigindo uma máquina que a leva para onde ela pretender.

Agora, ela chega em casa e a pequena viagem — veio da casa de um parente — se dissipa; sem luto. Ela entra no pequeno apartamento, seus olhos brilham, mas ela não vê, claro. Sente como se alguém estivesse em casa, mas ela mora só. A estranha vontade de dizer alguma coisa. Os olhos brilham novamente, e ela diz: “Oi, cheguei”. Um sorriso, que ela não percebe tampouco, transborda-se furtivo — mas não da boca dela. Do corpo?

Desde o carro, ela vinha pensando: “É sexta, é noite, e ainda é cedo”, enquanto a leveza da pista de asfalto se traduzia toda por baixo dela. Ela se percebe pensando: “É cedo da noite ainda, eu deveria...”. Dentro do carro, a cabeça dela passeia por algumas pessoas, por algumas distrações, possibilidades de programas. Mas o asfalto é tão suave, tão condigno, está tão pronto para ela; e o carro continua correndo, correndo, até chegar em casa. “Eu deveria querer sair”, ela pensa, mas continua seguindo, indo.

Agora, uma multitude de opções — mais programas — populam de viés a sua cabeça. É como se, enquanto o corpo dirigisse o carro, a mente ficou solta, achando encontros, querendo listas.

Porém, agora, já em casa, o sorriso, que é por demais leve, é sentido no quente das costas, ou no macio dos cabelos. É estranho. Do que sorri, ela? “Mas eu quero alguma coisa... é sexta, é noite, e é cedo”. Ela pensa em homens, ou num possível bar, ou numa roupa. Num batom, possivelmente, “Um batom? Seria um batom?”, ela pensa. Ela sente suas pernas. Suas pernas agora, percebeu que sorriem, e a levam para o banheiro. Ocorre o banho. Na água que desce, há sorrisos; sim, claro, ela percebe o entusiasmo, uma alacridade, mesmo que a água quase não faça barulho quando cai sobre seu corpo. Sua água é meio silenciosa, seu carro é meio silencioso, e tal qual, é ela. “Eu queria alguma coisa... no carro...”, ela se confunde, ela se estranha, se perde levemente em sua não-euforia que guarda uma tonalidade cálida.

Sai do banho, “Eu deveria sair, ir caminhar, encontrar? Alguém”. Sim, ela poderia ir, ela sabe, mas o corpo veste um vestidinho de casa, desses coloridos. É azul. Agora — agora algo finalmente se dá — saindo do banheiro para o quarto, um píncaro sorri perante ela, como que bem na frente dela — como o motor do carro, que sempre chega milésimos de segundos antes dela em qualquer lugar. Um píncaro... ou algo, sorri — ela segue o sorriso que vai até a cozinha. Abre a geladeira; arpoa com a mão esquerda uma garrafa de vinho (português, claro), aberta ontem; arpoa uma taça da mesma forma. O sorriso sai da cozinha, logo, ela perde-o de vista por uns cinco segundos, mas localiza-o novamente no pequeno escritório, onde ele já iniciou o computador.

“Sente-se”, ela pensa, ou ouve. Ela senta. Agora é uma cadeira diferente. Sim, há também um motor — possante, contudo, este, plenamente silencioso. Estranho, ela pensa: “Porque um sorriso? quando eu deveria... é sexta, é noite, é cedo.” Aqui não há um arranjo, um cônjuge, nem um carro. O sorriso se põe de lado, posiciona-se em vigília, e põe-se virado para ela.

Agora, ela mesma abre um redator — um programa —, na máquina que roda à sua frente e que chega ao mundo apenas alguns milésimos de segundo antes dela — e inicia com os dedos, numa lentidão não usual, uma digitação. E isso é — não como se dirigisse — mas como se inaugurasse um asfalto. Um terreno que se traduz por baixo dela. Ela diz baixinho: “Era isso”.

Sem se conter, e sem ser pelos lábios, o sorriso entra nela.

Maceió, 13 setembro 2024.