RESENHA

ENTRE A MENTE E O ANIMAL
por Ana Karina Luna


Baseado no livro do mesmo nome de Clarice Lispector, o filme “A Paixão Segundo G.H.” está dando o que falar. Ouvi que as pessoas estavam saindo no meio do filme pois “não acontecia nada”. 😅 Num dos relatos, até 20 pessoas saíram na metade do filme.

Minha análise é a partir dos aprendizados que tive como terapeuta holística da Gestalt Viva (Claudio Naranjo) — uma formação que é embasada em um formato onde o ateórico e o teórico ficam no mesmo nível —, e assim teatralizados, autotrabalhados e fundados no próprio experimento do corpo. Além disso, meu ponto de vista é informado pela minha própria experiência como buscadora: tanto com a meditação e a sabedoria tibetana, como com a psicanálise, como com vivências minhas, experimentos e rituais com a sabedoria ancestral (dentre elas, o tarô terapêutico e a astrologia profunda). Em suma, me interesso pelo encontro da mente com o animal interno, e é desse lugar que digo: que filme! Claro: que livro e que CLARICE! Celebro a coragem de Luiz Fernando Carvalho (diretor), de Melina Dalboni (adaptação) e de Maria Fernanda Cândido (atuação), assim como de toda a equipe. Retratar o irretratável é seguir pelo fio da mestra, dizendo o indizível. Quando acabou eu quis chorar, me considerei em frente a uma obra de arte: ah, a literatura; ah, a Clarice; ah, a palavra; ah, a poesia; ah, a interioridade! Lugares mais do que raros para mim.

Coisas que podemos agradecer a Clarice: pela coragem de relatar esse mundo “onde não acontece nada”. Quer dizer, onde PARECE que não acontece nada... Sim, pois o que parece mesmo é que o mundo lá fora está mesmo "por fora" do mundo lá dentro.

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Ainda lembro bem quando estudei um conto da Clarice (“O Búfalo”) no laboratório de criação e expressão literária do Prof. Nilton Resende (SESC AL) e ele explicou: “Clarice conta a interioridade, e não a exterioridade". E eu “ahhhhhh, é isso, é isso”. E como ela o faz primorosamente, conseguindo ignorar o mundo lá fora tão perfeitamente quanto o mundo lá fora ignora este mundo de dentro. E é por isso que as pessoas saem da sala do cinema. E quem realmente pode dizer o que diabos está acontecendo num texto de Clarice Lispector? Por isso tudo e tanto mais, Clarice, a meu ver, é também uma vingadora. Ela se “vinga” do mundo ao não admiti-lo, de certa forma, temporariamente. Não permitindo que ele entre. Não mais do que o mínimo. Isso não quer dizer que ela não capte muito bem o mundo lá fora. Pelo contrário. Ela está nos dois e escolhe onde ela se coloca e quando.

E as pessoas acostumadas com um mundo todo “masculino”, um mundo de ação, o mundo de Marte, da concretude, saem perplexas do cinema, no meio do filme, sem entender o que acontece (ou o que não acontece). Sem compreender que talvez não entendam o que (não) acontece no filme porque também não entendam o que (não) acontece dentro delas mesmas.

Ficar até o final seria como seguir a Mestra; mas talvez não passe pela cabeça das pessoas isso... Clarice como mestra.

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Pois o filme é uma terapia. Não, o filme é uma verdadeira ayahuasca: visual e interna. Primeiro, ver as frases de Clarice pipocando, uma após a outra, no oco da sala de projeção... que maravilha. A literatura como concretude, sim, também, parindo suas dimensões bem na cara da gente. Literatura como realidade. É pontada atrás de pontada e nem dá tempo de você se recuperar vem outra frase, ou insight, maravilhosos dessa buscadora incrível que foi Clarice. Como buscava-se profundamente... Admiro.

Um detalhe, porém: não é um filme para todo mundo. (Fiquei até pensando se não valia uma plaquinha na entrada, sério mesmo; Clarice pode ser remédio sutilmente brusco.) Possibilidade de surto é grande, visses. Se não estiver muito bem, ou tomando remédio, ou depressivo/a, ou muito vulnerável, ou meio perdido, ou pior, em crise... é bom ter cuidado, porque o que Clarice conseguiu nesse texto, a seu modo, único, foi descrever uma noite escura da alma.

Minha leitura vê esse texto de Clarice como o desesperador, mas potencialmente curativo, encontro da mente humana com o animal interno. O susto de ser também animal: sujo, imundo, instintivo, e considerado “nada” (como o mundo considera o animal, algo descartável, não senciente, inútil).

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“Isso é loucura, isso é loucura”, a protagonista grita contra a parede numa das melhores cenas, mas tem o rosto tomado de puro prazer, vira-se na direção da barata, a direção que o corpo teima em ir.

A mente humana X o animal. A mente humana... perfeita, resolvedora de tudo, entendedora de tudo. Se se observar direitinho, se vê como nas falas de G.H., o desespero não vem do animal, mas da mente humana se dando conta desse animal interno e vendo-o como o diabo, o incontrolável (ah, o grande medo da mente: a falta de poder, o não poder controlar!)

E às vezes na mesma frase, G.H. fala de uma alegria, de um prazer sem tamanho, e de uma liberdade, e de um desejo enorme (de comer a barata — a luta toda é essa... “quero comer, mas não devo”).

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Me dei conta durante o filme (e não no livro) de que a protagonista mata a barata e depois quer comê-la (como faz o bicho: come o que consegue matar; se alimenta daquilo). Mas para a mente racional isso é enlouquecedor (não falo aqui da Mente Profunda, que tem morado no inconsciente, este lugar mais sábio). Por isso, a confusão da protagonista: nojo e vitalidade, ambos vindo do mesmo lugar. Como assim?

Sim, pois a mente racional sente nojo de quase tudo o que é vital, que produz vida (gosmas, órgãos internos, sangue, mucosas, amebas, minhocas, a lista é grande de coisas hiper vitais das quais a mente tem nojo). Convenhamos, a mente humana tem um certo TOC, se comparada com a vida dos animais, muito mais enrolada com as outras vidas: germes, plantas, terra, chuva, lama, etc. Não, a mente até parece que tem medo da VIDA, da vida inteira, completa, plena, da vida real que contém a morte também.

A meu ver, Clarice (via protagonista) passa por esse despertar: quando a mente percebe que há um réptil interno — aqui representado pela barata — algo que se arrasta no chão — e tinha que ser algo pior do que uma cobra, mais nojento, mais totalmente desprezível, para poder trazer a impressão certa, o absurdo certo — pois a mente vê esse “lado animal” como sujo, imundo, horrível e terrível. Para ela, é irreconciliável.

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E esse réptil veio antes da mente e por isso ela o teme tanto. Pois é mais arcaico (sábio) que ela, é antes dela. Ele a sabe, mas ela não o sabe. No cerne disso, está a história do medo que o humano desenvolveu da Natureza quando primeiro surgiu a mente racional nele. O medo de tudo o que é incontrolável, inexplicável, e a partir do surgimento dessa mente (uns 6 mil anos atrás), ela própria, a mente, fez do seu intuito principal tentar controlar tudo o que não entendia, tudo do que tinha medo. Daí vem a ojeriza por tudo o que é considerado instintivo: que ficou considerado sujo, escuro, loucura, desprezível, demoníaco (ela repete essa palavra no filme, inferno, demoníaco, o diabo...). Mas essa é a visão A PARTIR da mente, e não necessariamente a visão real das coisas. Se fosse assim, a natureza seria toda demoníaca e nós saberíamos disso, pois os indígenas já nos teriam dito. E eles são os primeiros a dizer que não é assim, que é um engano. Aliás, a Natureza é um demônio (também, além de divina), mas isso não deveria ser um problema (mas é dentro da mente humana). Nós somos esse demônio também. Toda noite escura da alma passa por esse encontro, especificamente, é sobre isso, ver o que se esconde na sombra e que a gente está morrendo de medo, mas quer ver, como Clarice quer chegar perto da barata e não acredita que queira isso. Jesus no deserto tentado pelo demônio — tu achas que o demônio era quem? Os indígenas têm nos alertado que essa “cosmologia” da mente é um grande engano. É uma cosmologia doentia, de fato, pois arranca de si uma parte crucial: o bicho.

Aqui é fácil ver como as religiões são invenções de uma mente com medo de si mesma, de sua parte animalesca. Que se bem integrada, serviria para trazer vitalidade à pessoa, mas na sombra, vira “o diabo”. Como se houvera algo fora de nós e contra nós e que deve ser combatido. E fazemos isso no território do nosso próprio corpo, diariamente, não nos permitindo uma infinitude de coisas que são próprias do instinto, e do natural, querer. E lutamos com isso dia e noite, como G.H. no livro e depois no filme.

No fundo, é o encontro com o conceito do feminino cru, pois o instinto, na tradição pré-científica é englobado pela polaridade YIN. Novamente, esse encontro não teria que ser ruim, mas é por causa da maneira que a mente vê esse feminino. Vê-lo como uma barata. E quem, em mente sã, quereria comer uma barata?

Curioso é que a barata é o animal que é dito que se acabar tudo na terra, todos os animais, resistiria por 6 semanas sem alimento nenhum. Ou seja, um “ET” praticamente. Que bicho é esse, sim? Não o reconhecemos em nós.

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Digo que o filme é uma ayahuasca (ou o livro) porque um dos lugares mais importantes que a ayahuasca providencia é esse encontro com o animal interno — ao “destampar" o que está tampado pelo efeito “civilizatório”, o hemisfério direito do cérebro, a ayahuasca abre a porta para que saia tudo o que a mente racional, hemisfério esquerdo, não se sente nem orgulhosa nem à vontade de ser —, o animal interno não é um ursinho de pelúcia branca como a mente “Disneyworld” gostaria. Na verdade, a mente vive uma ilusão: a ilusão do que não é. Inventa para si própria uma história, de que é boa, de que é humana, de que isso e aquilo. E quem será que está fazendo todo o mal no mundo se a mente é tão boa não é mesmo? Quem será? Ah devem ser os animais! As baratas!

“O caminho para o inferno está ladrilhado de boas intenções”, diz o ditado. As histórias que o humano se conta de como ele é especial, e tal. Clarice (ou G.H.) despenca desse lugar. E vê.

Nos faz o favor de ver.

Abaixo, coloco algumas frases do livro, e faço correlações sobre como a mente vê, pela primeira vez, o animal, achando-o horrível, e ao mesmo tempo, querendo a libertação de assumi-lo e sê-lo finalmente, pois um lado mais profundo desta mesma mente sabe que ele, o bicho, é verdade. E é por isso que se diz que o corpo não mente jamais, e a mente sim, pois o corpo... é o território do instinto. É a barata quem manda. E ela não mente sobre o que é.

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“Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.”

“É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.”

“Terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária.”

“Sou cada pedaço infernal de mim.”

“(...) quanto a mim mesma, sempre conservei uma aspa à esquerda e outra à direita de mim.” (Ou seja, não sou real, de verdade. O animal não tem aspas, É. É a mente que é uma metáfora, uma analogia, um conceito. O animal é concretude. E não é louco que Clarice, no fundo, fala de coisas muito mais concretas, muito mais reais, em não falando de exterioridades, do concreto? Isso é a genialidade de Clarice.)

E aqui ela confirma:

“Dá-me a tua mão desconhecida, que a vida está me doendo, e não sei como falar – a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas.” (A mão desconhecida, a meu ver, é a mão do animal, do real, dessa verdade escondida sobre si mesma, de que não sou só mente, de que há outras coisas mais que me dirigem: instintivas, inconscientes, desejosas de que? Em perdendo um “amor”, uma paixão — pois a história se coloca, superficialmente, como uma mulher que perdeu um amor, um amante, e através da perda dessa atividade instintiva — que seria o sexo, no qual geralmente está concentrada a atividade da paixão — pois bem, perante a perda dessa localidade instintiva, dessa paixão, a essa mulher depara-se com outra, mas outra “paixão” que se revela muito mais real, muito mais profunda, a verdadeira fonte da paixão no humano: a movimentação instintiva em si mesma, o lugar que produz a paixão ele mesmo. É esse lugar que oferece a mão a essa mulher. No fundo, a mulher se apaixona pela barata, por isso diz “isso é loucura, isso é loucura” ao mesmo tempo em que ri, em que não resiste a essa loucura. Em que quer, porque quer estar viva, quer viver, e não há viver sem viver o instinto. A paixão vem daí, do corpo. Está presente na via crucis de Jesus, está presente na via crucis de G.H. e sua barata.)

“O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça – que se chama paixão.” (A paixão é o golpe da graça, a redenção, por isso fala-se da kundalini que leva à plenitude, ao êxtase – os êxtases de Santa Teresa como caminhos para a graça, para cima – essa paixão como graça sendo aquilo vindo do animal em nós, dos chacras baixas, da vitalidade e do instinto no corpo, bem ao contrário do que a igreja colocou, que para “subir aos céus, para ser mais santo, há que ser menos corpo”, mas Clarice revela que a história é bem ao contrário, assim como Santa Teresa. O próprio Jesus em sua Paixão: a última coisa que faz na terra antes da sua redenção é viver o corpo intensamente. É o corpo que leva aos céus, contrário ao que tem sido dito.)

“Numa experiência pela qual peço perdão a mim mesma, eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo.” (Entrando no mundo de verdade, o mundo do instinto, negado pela mente. Mas isso se dá primeiro entrando no “mundo dela”, no mundo interno, na introspecção — uma mulher sozinha em seu apartamento depois que a empregada vai embora, a partir do que a mulher tem acesso ao ‘fundo da casa’, ao fundo de si, ao que está ‘por baixo’, para o qual ela se direciona com uma chave na mão. A chave para uma outra dimensão que parece aterradora, mas é uma dimensão mais viva de si mesma. Vai para o fundo, para o quarto da empregada, para onde estão os bichos, para se encontrar.)

“Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?” (Quem tem medo dessa “desorganização profunda” é a mente, pois nada está desorganizado, o mundo é o que é, está onde está, a barata é a barata, mas e a mulher, quem pensa que é? Ou seja, quem a mente pensa que é? A mente vive o amor/a paixão como se fosse algo apenas “sagrado”, elevado, mas é um tudo. É “desorganização” e não é, é loucura e não é, é descontrole e não é.)

“E talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão.” (Aqui o cerne do medo, do instinto, amparada na ilusão de que o pensamento salva — é do que a mente a tenta convencer, na falta de controle sobre tudo, sobre o mundo, sobre o que não entende e lhe amedronta.)

Finalmente, observo várias vozes no filme: a da mente da mulher, que diz que isso tudo é loucura, é a voz do racional, do masculino, do pensamento; a do animal da mulher, que quer acordar, quer ser visto para que a mulher seja inteira, é a voz do corpo, do desejo inconsciente, dos sentidos e do sensorial; e a voz da barata, que aqui é um ser "integrado" externo que serve de mestre, que foi morto mas não morre, pelo contrário, fica produzindo vida — num animismo xamânico, seria uma sessão de cura através da figura de um animal-totem. Como num sonho ou... numa borracheira ayahuasqueira.

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Maceió, 29 abril 2024.