ENSAIO

ENTRE A _______ e a Identidade
por Ana Karina Luna

(Dica p/ ler no celular: vire na horizontal p/ ver as quebras certas dos versos nos poemas)


Desde que ouvi sobre o filme A SUBSTÂNCIA, desejei fazer um paralelo com uma obra que publiquei há menos de 2 anos, o livro de poemas Uma Mulher Dilacera o Patriarcado – Poemas de Vingança. Um livro feminista que veio pareado com outro, Adágios de Uma Escrava – Poemas de Pena. Juntos, eles transitam entre dois extremos os quais percebi que a mulher vive em nossa cultura: a raiva intensa, e em geral, latente, e a impotência desintegrante. Interessantemente os chamei de livro-duplo, pois foram literalmente impressos um nas costas do outro, formando um livro só, com duas capas.

Essa ideia de duplo aparece no filme também, onde duas mulheres são parte de uma só.



Vivi como espiã
de mim mesma.
Sendo eu ao contrário.



O FILME.

A Substância conta a história de Elizabeth, uma atriz famosa que está completando 50 anos, e sua carreira já não está mais no auge. Agora, ela apresenta um programa fitness no estilo Jane Fonda e recebe a notícia que será trocada por uma atriz mais jovem. Ela entra em crise consigo mesma, com o espelho, e com a idade. A partir daí, ela descobre uma chamada A Substância que promete que ela vai se tornar uma versão melhor de si mesma: mais jovem e mais bonita. O filme é no estilo horror corporal, do tipo A Mosca, porém satírico, com cenas sobre o corpo mostradas de forma grotesca, bizarra e chocante. O filme usa essa estratégia para chamar a atenção aos limites que a cultura encoraja mulheres a chegar em nome da beleza.


a-substancia-1


Nos meus dois livros, da mesma forma, a mistura de ideias violentas com disparate, humor e informalidade acontece. Sem pecar por um excesso de cuidado com estéticas aprisionantes, e acima de tudo, eu ouvia por dentro um pedido de mostrar a bagaceira sem medo, sem trilhos, sem corrimão, porque era justamente isso que era pedido da mulher: seja coerente mesmo que você viva uma experiência absurdamente incoerente (com quem você é, de fato).


livro-duplo


No filme, provavelmente a mesma sensação de conflito é sentida: entre a fama e a identidade, entre a aceitação e a identidade, entre ser desejada e a identidade, entre o pertencimento e a identidade, entre a insanidade e a identidade. Vá em frente, permita-se preencher o vazio.

Acima de tudo, eu queria delatar o absurdo de ser mulher.


SEU

feminino não é meu
minhas próteses, meu longo-liso,
meus cílios acompridados — sou um sonho de homem

mega-reto, mega-cílios, mega-prótese
a sola do meu sapato é um ponto no chão
que quase não toco — meu porto é
território de um cisco

— nada é meu
até este feminino é a ideia de um tosco



UMA VIDA QUE É UMA DROGA.

No filme, uma simbologia potente é que essa substância (que a Demi Moore toma, comprada no mercado negro) é considerada tendo as mesmas características de uma droga, que promete o nirvana, mas sempre tem seu custo. E o paralelo com a realidade é perfeito: a característica viciante dos procedimentos cosméticos leva a outro procedimento, e outro, e outro, assim que, uma vez feito o primeiro é difícil parar, já que, no fundo, no que se está tentando mexer não é apenas na imagem externa — isso é o que parece estar sendo “remendado”, “remodelado” ou “melhorado” — mas ao ficar patente (a quem olha de fora) que os procedimentos não estão deixando a estética melhor, começa-se a perceber que há uma má imagem internalizada (“sou ou estou imperfeita”) — a cultura convenceu a mulher de que é "natural ser perfeita", quando a realidade é o contrário disso: é perfeitamente natural ser imperfeita. E a loucura começa: para parecer "naturalmente perfeita", recorre-se a procedimentos, de forma alguma naturais, e que não deixam uma imagem natural. O quão louco é esse pensamento na nossa cultura?

(Esse tema é parecido com o do suicídio, mas para o suicídio é mais fácil de ser mostrada uma preocupação. Sim, as pessoas devem ter o direito de decidir sobre a própria vida; ao mesmo tempo, não há sociedade que não se preocupe quando o número de suicídios é muito alto, pois comunica que talvez algo não esteja bem, que algo precise ser olhado, que pessoas precisem de ajuda.)

Porém, com o tema da deformação da própria imagem, ainda não se pode falar disso abertamente, porque é a imagem de cada um, para a qual cada um tem livre-arbítrio, e parece um tema mais superficial. Mas será que o buraco não é mais embaixo?

Deformação e mutilação escondem sofrimentos psíquicos profundos que roubam a saúde de nós mulheres, e requer ajudas e cuidados.


Tudo aquilo que se consome de mim.


E essa lavagem patriarcal, esse convencimento, está em absolutamente todas as mulheres — assim como nos homens —, nós fomos lavadas para nos ver e nos fazer sempre jovens e perfeitas; eles, para nos demandar jovens e perfeitas.

Assim, o que começa a ser vislumbrado é que há algo quebrado nessa imagem de mulher que a cultura patriarcal criou, desde o dia 1 de nascimento de cada uma. Por isso, a droga tem que ser tomada de novo e de novo e de novo. Vemos até procedimentos estéticos quando não seriam nem visivelmente necessários (e os médicos aprovam). Mulheres os fazem cada vez mais novas. Daí para frente, como aborda o filme, é ladeira abaixo, pois uma vez que começa a mexer nesse vespeiro (o corpo, que tem sua própria ordem), ou seja, a introjeção absoluta, crença total e atuação concreta dessa ideia de imagem perfeita da mulher, cada vez se fica mais longe de uma imagem natural, que seria, por assim dizer, uma imagem mais próxima do real. Tanto por dentro como por fora. Fica impossível conviver com dois opostos tão absurdos — a "substância" e a real identidade — e esse é o drama tanto no filme, como no livro-duplo.


quanto mais unha pinto
quanto mais maquiagem minto
quanto mais bonita serei?
(será que ele também se pergunta: “serei bonito?”)

a história do desvalor — castelo de horror do ser
quanto mais natural menos amada se vê.



A POESIA E O PROFUNDO.

Na verdade, fala-se pouco da parte interna dessa equação. Mesmo o que já ouvi sendo falado a respeito do filme ainda não entrou no campo de que há um componente quebrado por dentro e está internalizado, ou introjetado.

A mulher tem sido por alguns milênios vítima de uma inferiorização e desvalorização constantes. Esse processo tem seus frutos, um deles, uma danificação violenta da autoimagem.

Essa ideia de que toda mulher tem alguma parte do seu corpo de que não gosta — e isso é passado de geração em geração, às vezes até com certo orgulho — é uma narrativa. Se a adolescente não tiver algo que ela ainda não percebeu que não gosta, ela vai lá procurar para poder se encaixar entre as amigas e compartilhar seu pedaço imperfeito, para, então, iniciar a busca pela perfeição, que termina definindo-a. Horas e horas em cabeleireiros, depilações, plásticas, pequenos procedimentos, sobrancelha & cílios, lojas, na frente do espelho; mil e um produtos, roupas, maquiagens, coleção de sapatos, preocupação com a roupa dessa ou tal festa, se sentir mal porque está vestida assim ou assado, não conseguir andar 3 quarteirões por causa do salto, depender de uma mão, e um gastos mensais de vulto para se manter no nível. E isso ainda foi vendido como “eu me cuido”, “um tempo para mim”, quando, de fato, está se cuidando para um desejo do mundo. Gastar horas e dinheiro no cabeleireiro quando haveria coisas muito mais interessantes para mulheres estarem enriquecendo suas vidas: essa foi a lavagem que nos foi vendida.

Neste momento, visualize homens fazendo isso. Não faz sentido, faz? Mas tem sido feito por tanto tempo que é considerado normal desvalorizar o próprio corpo e passar o dia inteirinho tentando correr atrás do prejuízo.


mulher
dizem que essa tal mulher não existe
dizem que não tem alma
que na vera não é nada,
que é um saco pomposo andando vazio
que não é desse mundo,
que foi infiltrada pelos alienígenas
que por dentro não tem nada,
mas como é que nada se equilibra no salto?
porque é leve, mulher.
não me chama de mulher, já falei.
desculpa.
não quero ser o que ninguém sabe quiporra
é isso.
dizem que é alucinação.
fantasma.
mas você já viu uma?
Mulher.


A cultura cria um ambiente de desvalorização da mulher, a mulher obviamente introjeta isso, pois é criada nessa cultura, inclusive é passada de mão para filha através de críticas detalhistas, e um sem fim de cuidados, e depois a mulher é que passa a fazer o trabalho da cultura: desvaloriza-se ao ficar achando pedaços imperfeitos em si mesma o dia todo, hora a hora, e o último estágio desse processo são os procedimentos estéticos, que prometem curar tudo, mas apenas ressaltam e pioram o problema, pois a cura seria autoaceitação, mas ninguém inventou essa droga, pois ela quebraria o mundo e a cultura. E assim, os procedimentos estéticos recomeçam o ciclo: ao fazer um, a mulher fica de olho e começa a achar outros pontos que precisam ser melhorados, e esse é a corrida do cachorro correndo atrás do rabo, que, certamente, leva a um tipo de loucura, como uma neurose da vaidade vazia. Nenhuma mulher está a salvo disso. É um vírus. E é um vício que começa a ser desenvolvido a partir do dia 1 de nascimento, ou talvez antes, quando já se sabe que é uma menina que vai nascer, e bem, não vamos entrar nas cores das roupas e na decoração do quarto.


um vício
um biquíni enfeitiçado
um vício
um biquinho ou
outro:
uma reboladinha ou
outro:
ah uma sainha curta
ah um vestidinho para este corpo-vaso
uma boquinha aberta,
um olhinho de donzela
um vício:
um objeto em uma cadeira
o objeto cruza as pernas,


Com relação a isso, a atriz Margaret Qualley, que fez a personagem Sue no filme — a nova mulher jovem e bonita que nasceu da coluna de Elizabeth — no disse que na vida real essa parte da estética não a incomoda tanto, que conseguiu se resolver e chegar numa certa paz, mas ao ser perguntada qual foi o grande desafio ao fazer a Sue (que tentava ser perfeita, pois ela era o duplo perfeito de Demi Moore?), ela responde que o maior desafio foi tentar não ficar maluca durante o processo de gravação, de tanto que tinha que se observar em todas as instâncias possíveis para poder parecer perfeita. Que analogia mais perfeita (sem trocadilho, por favor).

E curioso: Sue nasceu da coluna de Elizabeth. Já não bastasse ser nascida de uma costela de um homem, ainda damos jeito de parir mulheres perfeitas de dentro de nós que nos desestruturam completamente. A coluna é o que nos mantém dignas e de cabeça erguida, o fator estruturante do corpo. Orgulhosas de nós mesmas.


Ser costela
ser o vaso
ser em realidade aumentada
cabelos, unhas, peitos submetidos
valer menos que roupas
valer menos que o batom,
ter
uma ponta longa e fina debaixo do calcâneo

Ser o belo vaso na mesa vintage da entrada da casa
Ser a ideia
de um coitado: ser mulher


Sim, falar sobre tudo isso é difícil, doloroso, e, portanto, percebo ainda a resistência, o cuidado e o tabu que é. Mas se uma mulher não falar — e deveria ser ela mesma a iniciar essa fala —, quem será? Um homem? Já pensou sermos curadas da nossa obsessão cosmética por um simples homem? Seria decepcionante, o cúmulo da dependência: dependemos dele para nos deixar malucas e depois dependemos dele para nos sanar.


DILACERA É UMA GRITARIA. ADÁGIOS, MURMURANTE.

Uma vez, uma mulher me disse que o eu lírico de Dilacera falava demais. Ironicamente, uma frase repetida à exaustão por homens, e mais ironicamente ainda, era uma feminista e literata. Tive que compreender isso como um elogio ao eu lírico, já que quando uma mulher fala demais, quer dizer que ela diz verdades demais, diz o que não deveria ser dito, diz o que é proibido de dizer.

Outro fato curioso é que, dentre as mulheres que leram os dois livros, percebi uma identificação maior das leitoras com Adágios, que é um livro muito mais palatável, pois é o ponto polar da submissão, da desistência, do reclamar conformando-se, do verter lágrimas, que é um comportamento mais aceito para as mulheres, e para onde são empurradas. As que gritam e dizem coisas sem sentido são loucas e histéricas. Aperreiam tanto homens como mulheres. Porque a cultura não quer ser aperreada, sim? Nem tampouco seus fazedores. Nós.

Por isso, digo, não foi fácil escrevê-los, porque o patriarcado está dentro da gente, e delatá-lo, é delatar a gente mesma. É preciso coragem para sentir a dissonância cognitiva que bate.

Em Dilacera, o eu lírico feminino se permite. Gritar, dizer, comparar, julgar, julgar-se, expor o ridículo que o é construto-mulher. É pungente encarar o quão patética é essa construção. Por exemplo, observo as drag queens. Penso que fazem um trabalho de “teatro do absurdo”, literalmente demonstrando o que é esse construto feminino. Uma mulher sem tudo o que lhe botam em cima é muito parecida com um homem, ou vice-versa. Se colocar-se um homem e uma mulher nus lado a lado, há diferenças, mas elas são ou pontuais (ó óbvio, gônadas, peitos) ou bem sutis. Mas, no geral, são bem parecidos. Comparo isso com a natureza: quase sempre não fica tão evidente, de imediato, se um bicho é macho ou fêmea.


Cessem os títulos, o vexame do rótulo —
chamem os Índios, paridos, servem-se de andar nus
e desfrutar da mata.

Servemsedainquietantecoceiradocu.


No filme, Demi Moore, a protagonista, injeta-se com a Substância, e das costas dela nasce uma mulher nova, mas uma vez por semana, a personagem de Demi precisa voltar à idade original e ser quem é integralmente. A coisa se repete toda semana.

Na pauta do filme estão o envelhecimento e os padrões de juventude e beleza a partir da experiência da mulher numa sociedade patriarcal, e até que limites se tem ido para conseguir um pertencimento. Em tempos de Ozempic e Botox, esses temas nunca foram tão relevantes e estão cada vez mais sendo olhados.

O corpo é o assunto principal do filme. Em Dilacera e em Adágios, o corpo é observado em sua doidice, um corpo surtado, e a mente é delatada. É no corpo que ocorre a mutilação necessária para sustentar a demanda da cultura? Mas foi na mente que essa mutilação primeiro tomou substância?


Assim, a razão é um falo.
Cultuada em seu templo de doutores.
Não.
A razão não é — está um falo
e se distingue apenas por não ser castrada.


Por isso, observo com cuidado como nós mulheres nos formatamos, especialmente no corpo, como nos mutilamos disfarçadas de “estou me cuidando”. Se cuidando para quem?; e em algumas instâncias parece que estamos sendo livres para sermos quem quisermos: ter peitos em abundância, ter bundas novas, ter narizes novos, para sentir-se bem, para a autoestima — é como a coisa toda é vendida. À mulher é permitido apenas a autoestima morar na superfície do corpo dela; dentro, jamais; quebraria a cultura. A quem servem nossos peitos formatados, nossas bundas wheyzadas, nossos narizes empinados? Resultam mesmo de uma escolha própria? Somos o que achamos que somos? São nossos mesmos? Ou são ideias de outrem?

Quem está mutilado? Nosso corpo? Ou antes dele, nosso espírito? Nossa própria estima?


o tempo da mente
é um tempo que custa —
o tempo do corpo: é o não-tempo do aja.



SOBRE A DIRETORA.

A corajosa Coralie Fargeat.

Sobre ela, a WIKIPEDIA diz:

“Coralie Fargeat é membro e uma das signatárias fundadoras do Collectif 50/50, um grupo criado com o objetivo de trabalhar pela igualdade de gênero em toda a indústria cinematográfica.

Ela é fascinada pela ‘suspensão da descrença’ e adora usar imagens e símbolos para expressar algo simples de uma forma poderosa.

Ao fazer filmes gráficos ou cheios de sangue, Coralie descobre que equilibrar cenas violentas com humor torna a violência mais tolerável.

Coralie acredita que filmes que se enchem de homenagens e referências podem afastar o espectador da capacidade de se identificar com o filme. Ela descreve essa separação como “momentos de segundo grau” e opta por ficar longe de referências excessivas. Para poder conseguir isso, ela considera crucial abordar o cinema e a produção cinematográfica com uma visão genuína e sincera, afirmando que ela tenta ‘acolher [seus] personagens dentro das próprias escolhas deles, seus preconceitos, seus excessos, em suas falhas também’.”

O filme foi premiado no Festival de Cannes.

Curiosamente, o primeiro filme da francesa Coralie Fargeat é chamado Vingança, uma película de horror estreada em 2017, onde uma mulher violentada, dada por morta, volta e mata os 3 homens implicados na questão — nesse mesmo ano, nasceu a Lua Negra Cartonera, também por vingança; inspirada em Lilith, mas nascida positivada, que constrói a partir do que deseja expressar.


Sou uma negra
que esbranquiçou o suficiente
para estar aqui.



O GROTESCO PARA NARRAR O QUE É SER MULHER.

Fico pensando quantas pessoas assistirão a esse filme e pensarão que isso é só em Hollywood, e não com todas nós, como vi ser inferido em algumas resenhas sobre o filme. No entanto, essa “espiral de insanidade e destruição”, como li em um comentário sobre o filme, não é única de Hollywood. Está em todos os lugares da sociedade patriarcal; na terra toda.

O tratamento grotesco e bizarro também me lembrou o filme A Paixão segundo G.H., baseado no mesmo livro de Clarice Lispector, que explora ao extremo as imagens da barata sendo morta, o bicho morrendo, misturadas com a catarse vivida pela protagonista. Talvez haja uma nova coleção de filmes que, para tratar dos temas que a mulher vivencia, só apelando para o terror. Não me surpreende e confio que talvez não haja outra forma, pois a experiência de ser este gênero chamado mulher é tão absurda, e Simone de Beauvoir apontou para isso exaustivamente, que “a mulher é uma construção”, que só assim mesmo, no grotesco, no bizarro, na base da insanidade, na base do extremo corporal (sangue, sangue, sangue escorre em A Substância; muitos se retiraram em Cannes, assim como muitos se retiraram no filme do livro de Lispector), que só assim pode-se quebrar aos pedacinhos e aos pedações essa lavagem cerebral patriarcal absurda que é impingida em nós e em todos. Como nos vemos e como nos veem.

Talvez A Substância faça uma sangria para limpar esse sangue e botar um novo, pois esse sangue-construído não serve pois está tóxico. Talvez A Substância seja uma transfusão de sangue da mulher. É preciso outro sangue, um só nosso mesmo, um que não tenha sido manipulado, um que venha limpo desses condicionamentos, dessas ideias absurdas (de ser não-naturais) e só pelo horror do susto isso pode ser acordado em nós?


O DESCONFORTO DE DELATAR: PARTE DA PRISÃO PATRIARCAL.

A diretora disse, em algumas entrevistas, que não quer adicionar mais uma injunção às mulheres, no sentido de que agora, além de tudo o que é pedido delas, ainda por cima, não que “elas sejam também obrigadas a sentirem-se bem com elas mesmas”, pois o filme trata diretamente dessa frustração da mulher com a própria imagem, claro, cobrada pela cultura, mas ainda assim, concretamente atuada por ela, que está manipulada por essa mesma cultura.

Porém, tem como escapar de olhar esse elefante no meio da sala?

A cultura não vai dar um passo para trás, nem tampouco os homens. É triste e é solitário ser vítima, porque, para a liberdade ser real, há que se dar um passo numa direção diferente. Ao menos, talvez, as mulheres possam se apoiar entre si nessa mudança de paradigma que seria o não que eventualmente precisará ser dito a essa demanda extrema e absurda da cultura pela perfeição da mulher. Recusar papéis, recusar privilégios, porque o preço é sempre alto. Já que, uma vez dito o sim, o caminho de volta fica muito difícil. É preciso ter a coragem de não fazer o que se espera de nós.


Sair para tomar
vacina — e —
encher a cara.


Mudar a cultura não será fácil, mas exigirá em algum ponto dizer não a ela, venga lo que venga, pois, com certeza o nível de sofrimento de se perder da própria identidade não vale o inferno que as mulheres vivem dessa maneira de agora. Essa solução, em definitivo, não está funcionando, já que as mulheres estão cada vez mais adoentadas por esse jeito de abordar-se, baseada nesse olhar de fora. É uma coisa que sangra, como o filme de Fargeat. E as mulheres:


Buscam paredes de cavernas,
onde gastar garras ou pintar a sangue.
[...]
Onde há raiva há gritaria no sangue,
agride, usa os dentes, morde desobediente,
deixa rastro de vida: onde há raivas — ?


É hora de ligar o olho de dentro. Por mais utópico que alguns venham a dizer que é, não há outra maneira, pois as únicas que podem fazer alguma coisa para mudar o rumo dessa situação são as próprias mulheres: escapar da lavagem, conhecendo-se, cuidando-se, e optar por não ser manipulada, pois como disse uma mestra minha: em toda situação em que há um manipulador, há alguém que topa ser manipulado. É juntar a coragem necessária para renunciar aos privilégios (ser tratada como deusa por tantos e tantos anos? — e mesmo nesses casos, a gente sabe que não é bem assim, mesmo essas foram também assediadas, violentadas, humilhadas e desvalorizadas) e, ao fazer essa renúncia, ter também a coragem de se permitir uma vida de mais autenticidade. Sendo e parecendo quem se é. E isso já está mais do que perfeito.


O TABU DISFARÇADO DE CRÍTICA.

E finalmente, a crítica. De dois homens, a propósito:

Kevin Maher (Times), chamou o filme de “pueril, inútil e intelectualmente enganoso”. Com certeza, ele deve achar a mesma coisa das mulheres.

Nicholas Barber (BBC) disse: “durante a maior parte de suas duas horas, A Substância tem muito estilo, mas não muita substância”. “Por mais divertido e brilhantemente estilizado que seja, A Substância parece um desperdício lento e superficial de uma premissa intrigante”, diz ele. E continua: “À medida que Elizabeth e Sue começam a ficar nervosas, o filme se torna mais divertido e desagradável até que finalmente floresce em uma película de monstros perturbados, inundada de sangue falso e com esquisitices de terror corporal”.

Queria que você pudesse ver a minha cara ao ler isso. Pareço aqueles cômicos do Saturday Night Live, de olhos vesgos e lábios entronchados. Bem, bem, o Barber disse que o filme não tem substância, mas não é que essa última descrição dele é a sinopse perfeita da mulher construída? Eu acho que De Beauvoir diria para ele: “exatamente, e você que não percebe o que diz?”. Ou seja, a lavagem patriarcal é tão densa que nem quando o óbvio nela é jogado na cara, gruda. Especialmente na cara de homem é que não gruda mesmo.

Assim, faz parte da lavagem patriarcal que não se deve falar disso. Tanto a diretora como as duas atrizes pisam em ovos ao responderem as inúmeras perguntas nas entrevistas: o medo de delatar o absurdo, claro, e receber esse tipo de reação desses dois jornalistas-críticos, sumidades patriarcais certificadas pelo Inmetro (como diria minha amiga Lucia) e especialmente o medo de, no processo, julgar as mulheres.


eu,
apenas um muro a ser derrubado.


No meu treinamento como terapeuta, e também com os meus mestres, eu aprendi algo que me ficou precioso: o inconsciente se fecha perante o julgamento. Claro, é compreensível. Porque dói. Se julgamos, perdemos de ver o que acontece realmente. Porque o que acontece de verdade, sempre dói. Por isso é tão importante o acolhimento. E o acolhimento é a aceitação do que é e como é. Porém, uma vez instituído esse acolhimento, é a oportunidade de abrir os olhos bem grande e não ter medo de ver. E o que se vê não é bonito, mas o processo de ver é libertador.

A diretora Coralie Fargeat diz que o filme “é sobre como as mulheres são e como tudo o que é projetado sobre elas desde cedo molda seu estado de espírito. [...] Do ódio a si mesma e da sensação de que nunca se é boa o suficiente...”

A estapafúrdia experiência de ser uma mulher nessa cultura louca — por isso eu quis falar, por isso eu escrevi, porque a vontade de delatar é maior que toda a loucura. Porque tentar falar do proibido, seja como for, já é subversivo. E falar joga a insanidade de volta para onde ela cabe: ser vista.


Somos o doente
Somos o ridículo
Somos o demente
E ainda assim,
Somos o que existe.



MULHERES CÓSMICAS: CORPOS CÓSMICOS.

E em mais uma sincronia com o filme, ambos os livros, Dilacera e Adágios trazem ilustrações minhas da coleção Mulheres Cósmicas, que foram downloads meus de corpos energéticos femininos, cada um mais diferente do que o outro, e cada um com sua identidade próprio, manifesta através dos nomes que vieram junto com as ilustrações. Cheque algumas abaixo:


a-substancia-1

a-substancia-1


Maceió, 16 outubro 2024, véspera de uma super lua cheia em Áries.