ENSAIO

Diálogos: A Substância, A Autopiedade e A Autovingança
por Ana Karina Luna

(Dica p/ ler no celular: vire na horizontal p/ ver as quebras certas dos versos nos poemas)


Desde que ouvi sobre o filme A SUBSTÂNCIA, percebi um diálogo com duas obras que publiquei há menos de dois anos, os livros: Uma Mulher Dilacera o Patriarcado – Poemas de Vingança e Adágios de Uma Escrava – Poemas de Pena. Juntos, eles descrevem dois extremos que a mulher vive em nossa cultura: a raiva (em geral, latente) e a impotência — e esses não são, obrigatoriamente, os únicos extremos pelos quais uma mulher transita.

Interessantemente, os dois livros ficaram conhecidos por livro-duplo, pois foram, literalmente, impressos um nas costas do outro, formando um livro só, com duas capas.

Essa ideia de duplo aparece no filme também, onde duas mulheres são parte de uma só.



Vivi como espiã
de mim mesma.
Sendo eu ao contrário.




O FILME.

A Substância conta a história de Elizabeth, uma atriz famosa que, ao completar 50 anos, percebe que sua carreira já não está mais no auge. Ela apresenta um programa fitness de TV, no estilo Jane Fonda, e recebe a notícia de que será trocada por uma atriz mais jovem. Elizabeth entra em crise consigo, com o espelho e com a idade. A partir daí, ela descobre uma droga chamada A Substância que promete uma versão melhor de si mesma: mais jovem e mais bonita. O filme é no estilo horror corporal, do tipo A Mosca, porém satírico, com cenas sobre o corpo mostradas de forma grotesca, bizarra e chocante. O filme usa essa estratégia para chamar a atenção aos limites que a cultura encoraja mulheres a chegar em nome da beleza.


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Elizabeth, então, injeta-se com a Substância e vê nascer de suas costas a jovem Sue, que para se manter viva precisa se “alimentar” com um líquido que sai da coluna de Elizabeth. Além disso, a cada 7 dias, Sue deve sair de cena, que é quando Elizabeth se recupera (da retirada diária do líquido da coluna). Porém, Sue começa a abusar desse limite, não fazendo a parada a cada 7 dias, mas ainda retirando líquido vital de Elizabeth. Por causa disso, Elizabeth começa a envelhecer rapidamente. Vendo as consequências de Sue “roubar seu tempo de vida”, ela compra um kit para desfazer isso tudo, mas quando está injetando a Sue para que esta não exista mais, Elizabeth se dá conta de que ela precisa de Sue, pois Sue é a parte dela que todos amam. Ela ressuscita Sue, mas ao acordar, Sue vê o kit de cancelamento do esquema e mata Elizabeth, e depois disso vai para uma festa de fim de ano onde ela será a anfitriã principal, mas lá o corpo dela começa a se desintegrar. Sue, então, volta para casa e usa o kit inicial da Substância em si mesma, achando que pode criar uma outra versão de si mesma (a versão da versão?), no entanto, esse kit foi feito para ser usado só uma vez, e o que se cria é um híbrido dela e de Elizabeth (o velho e novo) e mais alguma coisa. Ou seja, um monstro. Ela volta para a festa, mas as pessoas se chocam com sua monstruosa aparência. Um caos se instala, ela acaba sendo decapitada; a essa altura ela está sangrando por todo lado (mas será que ela já não estava sangrando emocionalmente antes de isso tudo acontecer?). Uma nova cabeça cresce no monstro Sue-Elizabeth, que consegue chegar na calçada, onde explode. Nesse momento, a cabeça antiga que foi decapitada (e que tem a feição de Elizabeth) consegue se arrastar até a estrela na calçada da fama que contém o nome dela (o filme começa focando nessa estrela: um homem passa pela calçada da fama comendo um sanduíche e derruba ketchup na estrela de Elizabeth). A cabeça de Elizabeth se dissolve durante a noite, morrendo em cima da sua estrela da fama.


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ALGUNS SIMBOLISMOS.

Nesse final, mais um possível simbolismo na dissolução da cabeça: seria tudo na cabeça? A causa-raiz seria uma neurose? O problema foi expresso no corpo, mas veio do corpo ou é um problema na auto-imagem de Elizabeth? Em como ela se vê... E poderia ser esse pensamento, essa cabeça, essa forma de pensar que veio a morrer? Mas que também que trouxe a morte dela? Impossível não ver um gancho com o tema da saúde mental e o como ela pode afetar o ser humano.

Assim, o tema principal se delineia: procedimentos estéticos de todo tipo, que parecem apenas superficiais e inócuos, no fundo, mexem com a ordem (a substância?) do corpo. Procedimentos que parecem que estão dando mais vida jovem à pessoa — ou assim promete — estão na verdade, roubando saúde dela.


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Há também um personagem masculino, Harvey, inspirado em um produtor de Hollywood, de mesmo nome, que foi condenado por uma variedade de abusos a mulheres. Harvey é quem decide se Elizabeth vai ou fica. Suas maneiras são nojentas, ele não lava as mãos depois de usar o banheiro, por exemplo, e, através disso, representa-se uma conhecida canalhice patriarcal, onde o sistema — ou o homem (nem todo homem, mas sempre um homem) — é liberado para ser nojento e antiético, e ao mesmo tempo, tem o direito de decidir “quem vive e quem morre” dentro desse sistema, mostrado como, literalmente, podre, na figura asquerosa de Harvey.


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Estranhamente, isso se tornou tão comum na cultura — essa canalhice patriarcal — que as pessoas terminam tendo mais nojo de comidas, natureza, bichos, coisas naturais, de coisas do corpo do que da falta de ética.



O mundo tem medo
do cheiro de galinha
cozinhando.



A forma final do monstro teve até nome, “Elisasue”, e foi exagerado para poder mostrar uma pessoa totalmente distorcida e que não se reconhece nem é reconhecida mais. Essa é a ironia: Elizabeth injeta-se com a Substância para ser vista, reconhecida, amada, e no final, o tiro sai pela culatra; ela acaba distorcida, irreconhecível, e provoca asco, riso ou medo nas pessoas. Porém, quem Elizabeth é de verdade, por dentro, está cada vez mais longe de ser vista, tanto por ela, como pelos outros.

Logo no início, Elizabeth sofre um acidente no dia do seu aniversário quando, ao dirigir para casa, vê um outdoor com sua imagem sendo retirado de circulação. Estranho é que ela sai desse acidente sem nem um arranhão. Impossível não pensar em Freud... Em certos traumas, que vêm desde a época do nascimento ou primeira infância, é comum a natureza do trauma exigir que a criança aprenda a ser perfeita, sem um arranhão sequer, para poder sobreviver (ser amada ou vista) — de forma que esse passa a ser um estado normal de ser: a obsessão com a perfeição.


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O PECADO CAPITAL DA VAIDADE: O VÍCIO DE MANIPULAR A PRÓPRIA IMAGEM.

Claudio Naranjo, psiquiatra e pesquisador chileno, tem uma coleção de livros sobre nove arquétipos de personalidade baseados no Eneagrama. São arquétipos psicologicamente profundos. Elizabeth e Sue parecem atuar o Eneatipo 3, que tem o vício da Vaidade. Mas não a vaidade como conhecemos, de forma mais superficial, a qual todo mundo tem um pouco. A Vaidade como pecado capital: a necessidade (inconsciente ou não) de manipular a própria imagem para que esta seja de acordo com o que o outro deseja. Em palavreado atual: ser o que vai dar curtida. Ou seja, uma necessidade profunda de agradar, passando por não existir, de fato, uma auto-imagem, mas a própria personalidade é baseada numa máscara constantemente formatada ao que o outro deseja que a pessoa seja. Parece penoso, e é, mas há vantagens: dá muito trabalho ser quem se é. E exige coragem ser “rejeitado”. Render-se a ser o que o outro prefere que eu seja é, de certa forma, um tipo de saída, de fuga, embora cheia de consequências — que quando olhadas até convidam a refletir se não seria melhor ser mesmo quem se é. Bem, não há saídas fáceis. No fundo, a pessoa mente para o outro e para si mesma. Só que isso é visto como OK por dentro da pessoa. Foi sempre assim para ela. Nos casos mais extremos, não há limites para ser o que o outro deseja que o Vaidoso seja.

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Portanto, o Vaidoso patológico, que acredito ser o caso de Elizabeth, é alguém que peca capitalmente a respeito da própria imagem. Não a respeita, e a manipula ao infinito, achando, assim, que isso vai lhe conseguir alguma coisa, como por exemplo, ser aceitar, vista ou amada. Mas, como se vê no filme, isso não leva ao amor, porque não se pode chegar ao amor através do auto-ódio. No fundo, o vaidoso aprendeu a odiar a própria imagem, e não a respeitá-la como é, doa a quem doer. Óbvio, para a criancinha em condições periclitantes, dependendo do amor dos pais, isso seria difícil, então, ela cede. Desconecta-se da imagem interna, original, limpa, da criança divina, e parte para ser seja lá o que for que a consiga pertencimento, trabalho, amor, aceitação social, e também fama.

Para Elizabeth, buscar a perfeição é apenas uma busca natural. Ser perfeita se tornou a única maneira de estar no mundo. Ser perfeita se tornou “natural”, mesmo que tudo empregado para isso esteja longe de ser natural. Para Elizabeth, ser ela mesma, com todas as suas imperfeições não é visto como uma coisa natural. Acredito que esses traumas distorcem a noção da pessoa do que é ser natural, do que é ser a si mesma com naturalidade, espontaneidade, autenticidade. Essas são palavras que não existem no vocabulário da pessoa. Tudo é fake. E o fake é natural para ela.


A SUBSTÂNCIA É VERDE.

Nada melhor do que o uso de cores para demonstrar essa não-naturalidade do mecanismo que vai apagar, mais uma vez, a imagem de Elizabeth, e dar-lhe uma imagem nova. A Substância é verde, então, parece tóxica, radioativa, parece algo que não deveria ser colocado no corpo. Mas ela coloca. Um símbolo de como ainda estamos, nesse estágio da humanidade, procurando soluções rápidas para problemas profundos e complexos, e sem olhar o custo total e colateral. Fazemos isso com nós mesmos, com a natureza e com o outro.


O CORPO COMO ESCRAVO DA MENTE E OBJETO DA CULTURA.

Na cena em que Elizabeth tenta matar Sue e não consegue, ela sucumbe à ideia de que Sue é o que a permite ter algum valor na vida — muito embora a Substância tenha tirado tudo dela: sua saúde, seu tempo, anos da sua vida. É essa sensação de não valer nada aos olhos do outro o elemento da sua automutilação que a fez pensar que não importa o custo, nem como isso vai afetar o seu corpo mais para frente, e ela diz: “Eu preciso de você porque eu me odeio e você é a única parte amável de mim.” Aqui fica claro como um tema aparentemente externo está profundamente enraizado no campo da saúde mental.

Aí, Elizabeth vislumbra, mesmo que por um instante, que a obsessão de perseguir a perfeição roubou-lhe tempo e roubou-lhe a oportunidade de olhar-se de verdade, de ver-se de outra forma que não um corpo inerte que pode ser dado qualquer forma, de acordo com as demandas externas. Ela quase se escolhe, ela quase escolhe ficar com a lógica da sua alma, e com sua aparência natural, mas não resiste ao vício (ao pecado capital) que diz que há que servir o olhar do outro. Há que dar à sua personalidade adoecida, alimento. Assim, ela serve ao outro, mais do que a si mesma.



Precioso é o cuidar:
é como servir uma artéria
que não é a própria,
como um glóbulo
de um pulmão externo inundar.
Sirvo porque não tem mais jeito, e
gostaria não servir,
só gastar, só narciso.
Mas aquilo que não é alma quer alimento.




O DIÁLOGO COM O LIVRO-DUPLO.

Apesar da profundidade do assunto, A Substância traz na sua narrativa tanto violência como sátira e absurdo. Isso também acontece no livro-duplo, que mistura atitudes de automutilação com disparate, humor e informalidade. Um pouco do caos que talvez também aconteça dentro da mente de Elizabeth. O Vaidoso, sem saber, sempre estará lidando com: qual o limite da caricatura?, até que ponto sou amado ou visto com pena?, quando ainda sou eu e quando não sou mais eu?, quando estou conectado ou desconectado comigo mesmo? Isso é visto na confusão da dúvida na hora de matar ou não Sue, pensamento opostos aparecem: isso me faz mal, mas isso tem uma vantagem. E a escolha final, que tende a ser o apagamento da imagem essencial ou autêntica. Mais uma vez, ela se traveste.

Seguindo isso, nos poemas, há um cuidado de não pecar por um excesso de estéticas aprisionantes — trocadilho interessante, já que esse é o tema, estéticas que aprisionam — então, isso já sendo prisão o suficiente, os poemas pedem alguma liberdade, para serem o que são, admitidamente.

O eu lírico, então, é posto à vontade para se expressar como queira, às vezes em tom de tabloide, passando por ironia, falta de sentido, sarcasmo, raiva, acusação, infantilidade, repetição e mudança de ordem (experimentando-se), crueza, caricatura, certa obviedade, sem medo do ridículo, e definitivamente, dispensando a elegância, se necessário for. Acima de tudo, o eu lírico ouve por dentro um chamamento de mostrar sua bagaceira sem trilhos e sem corrimão. Cairá? De novo? Cairá como?

Voltando para a demanda social. Parte da trava nessa prisão pela imagem que é impingida à mulher, há um pedido não razoável: seja coerente mesmo que você viva uma experiência absurdamente incoerente (o que você parece X quem você é). Isso é subvertido nos poemas: essa máxima não é respeitada. O eu lírico se atira para todo lado, sem estéticas, sem moldes, faça sentido ou não, e há que passar por isso, para se experimentar. Há que se soltar.

Inclusive, durante o processo de curadoria dos poemas, houve o cuidado de não os refinar em demasia, como se isso imputasse um crime ao que representavam: o exercício-antídoto à ameaça do ridículo — a ameaça sendo "não pertencer", vulgo: não ser aceita — incluindo não levar a sério a demanda social que aprisiona com essa ameaça. A imagem que é resgatada, o é aos trancos e barrancos, mas agora está auto-apropriada, novamente — ou talvez, pela primeira vez. Seja ela qual for, melhor assim. Solta dos trilhos e do corrimão: a vivência exagerada, consciente, teatral da própria neurose faz um tipo de um teatro do absurdo que permite ver esse absurdo, e vê-lo é o começa de se reapropriar de si mesma.


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Portanto, os poemas atuam como um exercício-antídoto também para o Vaidoso, ou para os aprisionados da estética, da imagem, todos nós, numa suspensão temporária da Lei do Pai, para que se viva toda essa confusão com tudo o que ela é. Só caindo no ridículo, ganha-se a liberdade de não mais ser regido por ele. A demanda de ter que atuar tal ou qual imagem perde seus tentáculos sobre o eu lírico.

Experimentar com o cru, com o não-refino, com o que vem primeiro, com essa primeira experiência da autenticidade que pode vir bruta, inicialmente. O eu lírico vê o refino como algo perigoso, do qual desconfia, e que não é de todo ruim, mas deve ser observado. É a mente que o faz? Quem dita esse refino? Disso tudo, o eu lírico, desconfia, e assim, subverte.

No filme, provavelmente a mesma sensação de conflito é sentida: entre a fama e a identidade, entre a aceitação e a identidade, entre ser desejada e a identidade, entre o pertencimento e a identidade, entre a insanidade e a identidade. Vá em frente, permita-se preencher o vazio: entre a/o ______ e a identidade.

Acima de tudo, esse eu lírico pretende delatar o absurdo de ser mulher, seja porque há extremos, seja porque está preso em um ou no outro, seja porque oscila entre os dois, vivendo uma vida dupla que não satisfaz.



SEU

feminino não é meu
minhas próteses, meu longo-liso,
meus cílios acompridados — sou um sonho de homem

mega-reto, mega-cílios, mega-prótese
a sola do meu sapato é um ponto no chão
que quase não toco — meu porto é
território de um cisco




COMENTÁRIOS DO PÚBLICO AO FILME.

“Nunca vi um retrato mais direto do ódio feminino por si mesma. Este filme realmente ilustrou a brutalidade das pequenas violências que infligimos a nós mesmas todos os dias.”

“Sue sente nojo de Elisabeth porque Elisabeth sente nojo de Elisabeth. E se Elisabeth amasse a si mesma, provavelmente, Sue também o faria. Mas se Elisabeth amasse a si mesma... Sue nunca teria sido criada, para começar.”

“Ele [Harvey] não tem modos à mesa e não lava as mãos depois de usar o banheiro enquanto Elizabeth é julgada por ENVELHECIMENTO, algo que acontece com, literalmente, todo mundo. É quase um comentário também sobre como os homens têm menos expectativas de higiene/limpeza colocadas sobre eles em comparação com as mulheres, e às vezes até as evitam ativamente...”

“E tem a voz ao telefone, constantemente tentando lembrá-la de que é ela quem estava fazendo isso com ela mesma.”

“Eu não conseguia acreditar o quanto Elizabeth odeia sua persona.”

“Incrível como o filme consegue ser nojento, hilário e de partir o coração ao mesmo tempo.”




UMA VIDA QUE É UMA DROGA.

Uma simbologia potente é que a Substância (a propósito, comprada no mercado negro) tem as mesmas características de uma droga: promete o nirvana, mas com um custo. O paralelo com a realidade é perfeito: a característica viciante dos procedimentos cosméticos leva a outro procedimento, e outro, e outro, assim que, uma vez feito o primeiro é difícil parar, já que, no fundo, no que se está tentando mexer não é apenas na imagem externa — isso é o que parece estar sendo “remendado”, “remodelado” ou “melhorado” — mas ao ficar patente (aos outros, talvez) que os procedimentos não estão deixando a estética melhor, começa-se a perceber que há uma má imagem internalizada (“sou, ou estou, imperfeita”) — tendo a cultura convencido a mulher de que é “natural ser perfeita”, quando a realidade é o contrário: é perfeitamente natural ser imperfeita. E a loucura começa: para parecer “naturalmente perfeita”, Elizabeth recorre a procedimentos de forma alguma naturais, e que não deixam uma imagem natural. O quão insano é esse pensamento na nossa cultura?

De fato, a palavra insanidade é a que mais vi nos comentários sobre o filme.

(Esse tema é parecido com o do suicídio, mas para o suicídio é mais "fácil" de ser mostrada uma preocupação. Sim, as pessoas devem ter o direito de decidir sobre a própria vida; ao mesmo tempo, não há sociedade que não se preocupe quando o número de suicídios é muito alto, pois comunica que talvez algo não esteja bem, que algo precise ser olhado, que pessoas precisem de ajuda.)

Porém, com o tema da deformação da própria imagem (e isso inclui não só remédios injetados e plásticas, mas outros) ainda não se pode falar disso lúcida ou abertamente porque a imagem das pessoas parece um tema superficial, por ser na superfície da pele, e assim, parece só dizer respeito à pessoa. Mas será que o buraco não é mais embaixo?

Se essa imagem está sendo projetada para o mundo, então, ela atua, modifica e ativa conceitos e atos no mundo. Então, o mundo participa de alguma forma.


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O limite entre uma vaidade sadia e a deformação parecem estar misturados na nossa cultura (se é que existe vaidade sadia; seria melhor chamar de uma autoestima sadia?) Quando se implanta uma estética em um corpo, o que é um ato que constrói e um que destrói? Quando e como haveria um desejo de esconder algo quando uma pessoa quer se mostrar de outra forma que não a natural? Interessante é que a pele é o nosso órgão de contato com o mundo e com o outro — o primeiro sentido a ser formar no embrião — sendo assim, é fronteira, e onde colocamos limites (ou não). Roupas, bijuterias, tatuagens, produtos, plásticas, e os mais variados procedimentos que modulam ou modificam essa pele — o que está ali para rebaixar e o que está para alçar? O que vem de uma intenção de realce, e o que, no fundo, põe uma casca, como um limite? O que em-beleza, e o que en-feia? (nos termos gregos, mesmo, do Belo como Verdade, e do Feio como Mentira). O que choca e o que harmoniza?

Autodeformação e automutilação podem esconder sofrimentos psíquicos profundos que roubam a saúde, especialmente de nós mulheres, e podem ser pedidos de ajuda e cuidados.



Tudo aquilo que se consome de mim.




A LAVAGEM PATRIARCAL.

E essa lavagem patriarcal estética é um convencimento que existe dentro de absolutamente todas as mulheres — assim como nos homens —, nós fomos lavadas para nos ver e nos fazer sempre jovens e perfeitas; eles, para nos demandar jovens e perfeitas.

Assim, o que começa a ser vislumbrado é que há algo quebrado nessa imagem de mulher que a cultura patriarcal criou, desde o dia 1 de nascimento de cada uma. Por isso, a droga tem que ser tomada de novo e de novo e de novo. Vemos até procedimentos estéticos quando não seriam nem visivelmente necessários (e os médicos aprovam). Mulheres os fazem cada vez mais novas.

Daí para frente, como aborda o filme, é ladeira abaixo, pois uma vez que começa a mexer nesse vespeiro (o corpo, e que tem sua própria ordem) — quando há a introjeção absoluta, isto é, quando a mulher acredita absolutamente nessa crença da estética patriarcal, isso sai da cabeça e vai para o corpo, e então, ela concretiza de forma total essa "imagem perfeita" na vida real, ficando cada vez mais longe da uma imagem natural, que seria, por assim dizer, uma imagem mais próxima do real. Tanto por dentro como por fora. Fica impossível conviver com dois opostos tão absurdos — a Substância e a identidade — e esse é o drama no filme. No livro-duplo, a experimentação é ao contrário, suportar o caos temporariamente ao permitir a proximidade dos opostos.

O que questiono aqui não é o livre-arbítrio de uma pessoa. O que questiono é se sabemos, como cultura, quando o desejo vem de um lugar livre e quando vem de um lugar neurótico. Ou seja, conseguimos ver quando a sociedade se confunde e levanta bandeiras para defender realizações que parecem ser "libertas", mas vêm de um ligar de prisão? E isso é bom para as pessoas? Sabemos que a cultura molda mentes (felizmente e infelizmente), e quais são as consequências quando o que a cultura propõe é, no fundo, destrutivo para o corpo e para a psique do humano, mas é vendido como liberdade de expressão?

Imagino que alguém poderia perguntar: e qual o dano de perseguir a perfeição? (Traduzindo: viver na mentira, já que a perfeição só existe no dicionário; o resto é manipulação; e, sinceramente, já ouvi essa pergunta.) Como isso afeta o mundo? Abstenho-me de explicar o óbvio.


quanto mais unha pinto
quanto mais maquiagem minto
quanto mais bonita serei?
(será que ele também se pergunta: “serei bonito?”)

a história do desvalor — castelo de horror do ser
quanto mais natural menos amada se vê.




A POESIA E O PROFUNDO.

Fala-se pouco da parte interna dessa equação na perseguição da perfeição. De que há um mecanismo adoecido por dentro, e está internalizado ou introjetado.

A mulher tem sido, por alguns milênios, vítima de uma inferiorização e desvalorização constantes e brutais. Só isso quebraria e adoeceria qualquer alma. Esse processo tem seus frutos, um deles, um dano violento à autoimagem.


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Essa ideia de que toda mulher tem alguma parte do seu corpo de que não gosta — e isso é passado de geração em geração, às vezes até com certo orgulho — é uma narrativa. Se a adolescente não tiver algo que ela ainda não percebeu que não gosta, ela vai lá procurar para poder se encaixar entre as amigas e compartilhar seu pedaço imperfeito, para depois iniciar a busca pela perfeição, que termina definindo-a.

Horas e horas em cabeleireiros, depilações, plásticas, pequenos procedimentos, sobrancelha & cílios, lojas e provadores, na frente do espelho; mil e um produtos químicos, roupas, maquiagens, coleção de sapatos, preocupação com a roupa dessa ou tal festa, se sentir mal porque está vestida assim ou assado, não conseguir andar três quarteirões por causa do salto, depender de uma mão (quase sempre masculina), e gastos mensais de vulto para se manter no nível. E isso ainda foi vendido como “eu me cuido”, “um tempo para mim”, quando, de fato, está se cuidando para um desejo do mundo, da cultura.

Um mestre um dia me falou: "Cuidado com a cultura, o objetivo dela é retroalimentar a si mesma."

O exemplo mais óbvio e bobo é sobre gastar horas e dinheiro no cabeleireiro quando haveria coisas muito mais interessantes para mulheres estarem enriquecendo suas vidas: essa foi a lavagem que nos foi vendida.

Neste momento, visualize homens fazendo isso. Não faz sentido, faz? Mas tem sido feito por tanto tempo que é considerado normal desvalorizar o próprio corpo (e o próprio tempo) e passar o dia inteirinho tentando correr atrás do prejuízo.


mulher
dizem que essa tal mulher não existe
dizem que não tem alma
que na vera não é nada,
que é um saco pomposo andando vazio
que não é desse mundo,
que foi infiltrada pelos alienígenas
que por dentro não tem nada,
mas como é que nada se equilibra no salto?
porque é leve, mulher.
não me chama de mulher, já falei.
desculpa.
não quero ser o que ninguém sabe quiporra
é isso.
dizem que é alucinação.
fantasma.
mas você já viu uma?
Mulher.




DRAGS.

Não me aprofundarei na relação desse tema com o das drag queens, mas quero ao menos mencionar, já que há ingredientes em comum. Acredito na liberdade de expressão, claro; assim, vejo a expressão das drag queens como válida, porém, não no sentido de empoderamento. Da minha perspectiva, elas fazem algo parecido com o teatro do absurdo inglês: exageram para a gente ver — a prisão da montagem da mulher.

Acompanhei o processo de uma drag queen que saiu do armário, e que foi a criação de um homem gay. Uma das partes mais interessantes e chocantes era o tanto de tempo, dinheiro e esforço no processo de montagem que esse homem levava para virar mulher. Oito horas, nas fases iniciais, para fazer a maquiagem! Sem falar no dinheiro para comprar o material (perucas, roupas, saltos, maquiagem). Mais horas e horas fazendo cursos e aulas online para aprender como disfarçar absolutamente tudo para que parecesse perfeito (novamente, o conceito): sobrancelhas no ângulo certo, luz nos lugares do rosto para ressaltar ou esconder volumes, perucas caras, e aprender a andar, dançar, performar e cima de um salto! (Eu só faltei ver a Simone de Beauvoir se revirando no túmulo, ela que descreve os saltos como um jeito de desconectar a mulher da terra, do que é real e concreto, da força de pisar no chão com estabilidade e autonomia). Nossa cultura distorceu isso: estar no salto virou estar poderosa. A lavagem e suas inversões: faz da fraqueza uma força, e detona uma força transformando-a em fraqueza.


demi


Não demorou para que a drag que eu acompanhava começasse com as cirurgias plásticas. Na busca pela perfeição... onde seria a parada final?

A associação entre drag queens e o empoderamento feminino, a meu ver, é incompreensível: não quereriam as mulheres, justamente, se livrar da montagem?, que é uma fraqueza-feita-força, pela simples razão que não homenageia a identidade real e natural das mulheres. Não premia a mulher por ser como é naturalmente, autenticamente. Pelo contrário, cria máscaras, maquiagens, perucas, espartilhos. Então, estou poderosa só quando estiver no salto? — segredo: abandonei-os há uns 20 anos, e aí, sim, acessei um outro poder — o salto que aperta, o salto que tira o equilíbrio, o salto que desconecta da força vital da terra, esta que é força de libido, o salto que pode virar e luxar ou até quebrar o pé.

O prazer de saltar de um carro sem ajuda, de poder parar o carro onde quiser e caminhar o que for necessário para chegar nos lugares, sem grandes problemas; de andar quarteirões e quarteirões sem bolhas ou calos no pé, sem cansar e sem dificuldades, de chegar em casa e não ter que pôr os pés para cima, exausta, de não ter que suportar o desconforto numa festa, num casamento, no trabalho, na rua. O agenciamento de poder contar com um mecanismo crucial: me movimentar para onde quero, como quero, com ligeireza e flexibilidade e facilidade de direcionamento. Será que as mulheres já pensaram nisso? Os homens vivenciam isso todos os dias, e é maravilhoso. Lembro bem quando tomei essa decisão em Seattle. Eu trabalhava no centro e gostava muito de voltar para casa caminhando. Não só me relaxava, como era divertido, e ainda movimentava meu corpo, cansado de ficar sentado trabalhando. Mas de salto, nem pensar fazer isso. Foi quando tomei a decisão de deixar para trás essa prática que rouba, literalmente, a liberdade de agenciamento da mulher. Rouba seu movimento (e a deixa sempre "sexy", ou seja, sempre no objeto). Resolvi que eu queria era ser sujeito, era muito mais divertido. Comprei sapatinho lindos, baixos e hiper confortáveis para me movimentar. Tocar o chão: eu sentia a força desse movimento. Tenho ótimas memórias dessas caminhadas para casa: depois de ganhar meu dinheiro — eu trabalhava como designer —, eu me levava para casa com os meus próprios pés. Meu ex-marido oferecia muito para ir me buscar. Eu geralmente respondia 'não'. Eu não ia me roubar dessa experiência de tanta fruição, na minha própria companhia. Eu era pura agência.

Uma outra experiência sobre drag queens: já fui em festa de chá de panela de noiva onde a animação ficou por conta de uma drag queen — quer dizer, da energia de um homem, claramente sentida. Nós todas lá, envergonhadas de nós mesmas, precisando de um homem vestido de mulher para nos ensinar a nos soltar. Que situação ridícula. Não me senti empoderada, mas inconveniente. As brincadeiras que ele fazia, sexualizadas a la patriarcado, me lembravam das coisas que não eram minhas, de fato, que eram impostas de fora. Será que é assim mesmo que as mulheres se “soltam”?



uma rainha
sou e me orgulho
meu absurdo de ser mulher — ser
a fantasia de um bobo — ser um vaso



Esse assunto da montagem que a mulher tem que passar para parecer mulher ainda é bastante tabu no Brasil, pois não ouço muito falar sobre isso a partir do ponto de vista da inversão de valores (que questione essa “fêmea patriarcal”). Aqui, se a drag queen é questionada, o é apenas a partir de um preconceito que homem não deve ser vestir de mulher. Meu ponto não é esse, inclusive acho que os homens perdem muito em não pode experimentar com certas expressões estéticas que podem ser muito divertidas: brincar com o cabelo, com as cores, com as roupas. Mas expressão é uma coisa, deformação e destruição psíquica e corpórea é outra. Aí, é o limite da ética de cada um, apenas, que pode atuar. Nem mesmo a moral.

Ninguém deve deter o conceito do que deve ou não ser o feminino — o mesmo para o masculino, até porque, todos temos os dois princípios em nós, já que não são gêneros, são força primárias de manifestação — mas a visão patriarcal dita a regra: seu feminino caricato é espalhado por todos os lugares da terra, em lojas, roupas, atitudes.



O feminino grita: quem sou eu mesmo?



Como seria se as próprias mulheres viajassem por outras experiências do feminino e quais seriam elas? Ao invés de homens atuando um feminino caricato que repete padrões que, como falou De Beauvoir, apenas desconectam a mulher de si mesma. Padrões estes que modificam o externo, e por isso o maquiam e o mascaram para ver se ele “encaixa”. De novo, deformação, formatação. É isso o que procuramos como sociedade, como pessoa? Não seria o autêntico a grande expressão do ser humano? Se pudéssemos emprestar um olhar meio tibetano, de um Yin que fala de algo mais dentro do que fora, eu olharia, então, para Clarice Lispector ou para Emily Dickinson, para espiar num buraco de fechadura que talvez dê mais respostas, ao invés de procurar um feminino do lado de fora... pois, aí, ele só pode vir caricato. Não é seu reino de atuação, mas... lá de dentro, ele tem o poder de informar ao que está cá fora. E com certa sabedoria. Em um jeito só dele. É só permitir.

Mas a cultura permite o dentro informar sabiamente o fora?



quando —
feminino furacão ousa
como ousou Dicksoniano, um dia,
um vulcão, de porte agudo
de sorte feroz, quando —
a dança abre as pernas
e suscita massa vermelha, para fora
ou os marrons da terra —
quando a água explode na fonte água jorra




NA CULTURA, O FEMININO VALE POUCO.

A cultura cria um ambiente de desvalorização da mulher. Por conseguinte, a mulher obviamente introjeta isso, pois é criada nessa cultura, inclusive essa cultura — essa forma de pensar — é passada de mãe para filha através de críticas detalhistas e de um sem-fim de cuidados. Depois, fala De Beauvoir, acaba sendo a própria mulher que passa a fazer o trabalho da cultura patriarcal: desvaloriza-se ao ficar achando pedaços imperfeitos em si mesma o dia todo, hora a hora, e o último estágio desse processo são os procedimentos estéticos, que prometem curar tudo, mas apenas ressaltam e pioram o problema, pois a cura seria uma autoaceitação, mas ninguém inventou essa droga ainda, pois ela quebraria o mundo e a cultura. E assim, os procedimentos estéticos recomeçam o ciclo: ao fazer um, a mulher passa a exercer um olhar constante e alerta sobre si, ela vira um vigia estético de si mesma, e começa a achar outros pontos que precisam ser melhorados, e essa é a corrida do cachorro correndo atrás do rabo, que, certamente, leva a um tipo de loucura, como uma neurose da vaidade vazia. Nenhuma mulher está a salvo disso. É como um vírus e é um vício. E é um vício que começa a ser desenvolvido a partir do dia 1 de nascimento, ou talvez antes, quando já se sabe que é uma menina que vai nascer, e bem, não vamos entrar nas cores das roupas e na decoração do quarto.


um vício
um biquíni enfeitiçado
um vício
um biquinho ou
outro:
uma reboladinha ou
outro:
ah uma sainha curta
ah um vestidinho para este corpo-vaso
uma boquinha aberta,
um olhinho de donzela
um vício:
um objeto em uma cadeira
o objeto cruza as pernas,



Com relação a isso, a atriz Margaret Qualley, que fez a personagem Sue no filme — a nova mulher jovem e bonita que nasceu da coluna de Elizabeth — disse, numa entrevista, que na vida real essa parte da estética não a incomoda tanto, que conseguiu se resolver e chegar a uma certa paz com sua aparência, mas ao ser perguntada qual foi o grande desafio ao fazer a Sue (que tentava ser perfeita, pois ela era o duplo perfeito de Demi Moore), ela responde que o maior desafio foi tentar não ficar maluca durante o processo de gravação, de tanto que tinha que se observar em todas as instâncias possíveis para poder parecer perfeita. Que analogia mais perfeita (sem trocadilho, por favor).

Como manter a sanidade se uma mulher precisa se escrutinizar minuto a minuto? Ter autoconsciência é bom e até terapêutico, mas a autoconsciência ser usada para achar defeitos constantemente é receita para a insanidade.

E curioso: Sue nasceu da coluna de Elizabeth. Já não bastasse ser nascida da costela de um homem, “previamente”, ainda damos jeito de parir "mulheres perfeitas" de dentro de nós que nos desestruturam completamente, e depois se voltam para nós mesmas para nos destruir (literalmente o que acontece no filme: Sue mata Elizabeth). A coluna é o que nos mantém dignas e de cabeça erguida, o fator estruturante do corpo. Orgulhosas de nós mesmas. Mas se da coluna sai algo tóxico... isso desestrutura, sim?


Ser costela
ser o vaso
ser em realidade aumentada
cabelos, unhas, peitos submetidos
valer menos que roupas
valer menos que o batom,
ter
uma ponta longa e fina debaixo do calcâneo

Ser o belo vaso na mesa vintage da entrada da casa
Ser a ideia
de um coitado: ser mulher



Sim, falar sobre tudo isso é difícil, doloroso, e, portanto, percebo ainda a resistência, o cuidado e o tabu que é. Mas se uma mulher não falar — e deveria ser ela mesma a iniciar essa fala —, quem será? Um homem? Já pensou sermos curadas da nossa obsessão cosmética por um homem? Seria decepcionante, o cúmulo da dependência: dependemos dele para nos deixar malucas e depois dependemos dele para nos sanar.


DILACERA É UMA GRITARIA. ADÁGIOS, MURMURANTE.


livro-duplo


Uma vez, uma pessoa me disse que o eu lírico de Dilacera falava demais. Ironicamente, uma frase repetida à exaustão por homens, e mais ironicamente ainda, veio de uma mulher. Tive que compreender isso como um elogio ao eu lírico, já que quando uma mulher fala demais, quer dizer que ela diz verdades demais, diz o que não deveria ser dito, diz o que é proibido dizer.

Outro fato curioso é que, dentre as mulheres que leram os dois livros, percebi uma identificação maior das leitoras com Adágios, que é um livro muito mais palatável, pois é a polaridade da submissão, da desistência, do reclamar, conformando-se, do verter lágrimas, que é um comportamento mais aceito para as mulheres dentro da sociedade, e para onde também são frequentemente empurradas. As que gritam e dizem coisas sem sentido são loucas e histéricas. Aperreiam tanto homens como mulheres. Porque a cultura não quer ser aperreada, sim? Nem tampouco seus fazedores — ou seja, nós mesmos.

Por isso, digo, não foi fácil escrevê-los porque o patriarcado está dentro da gente, e delatá-lo é delatar a gente mesma. É preciso coragem para sentir a dissonância cognitiva que bate.

Em Dilacera, o eu lírico feminino se permite. Gritar, dizer, comparar, julgar, julgar-se, expor o ridículo do construto-mulher. É pungente encarar o quão patética é essa construção, e me perdoem, mas é nas drag queens que isso fica dolorosamente patente. Eu olho e penso: “Somos isso?, nos submetemos a esses mesmos rituais?”. Uma mulher sem tudo o que lhe botam em cima é muito parecida com um homem, ou vice-versa. Se se colocar um homem e uma mulher nus lado a lado, há diferenças, mas elas são: ou pontuais (o óbvio, gônadas, peitos) ou bem sutis. Mas, no geral, são bem parecidos. Comparo isso com a natureza: quase sempre não fica tão evidente, de imediato, se um bicho é macho ou fêmea.


Cessem os títulos, o vexame do rótulo —
chamem os Índios, paridos, servem-se de andar nus
e desfrutar da mata.

Servemsedainquietantecoceiradocu.



Portanto, no filme, Demi Moore, a protagonista, injeta-se com a Substância, e das costas dela nasce uma mulher nova, mas uma vez por semana, a personagem de Demi precisa voltar à idade original e ser quem é integralmente. A coisa se repete toda semana. Ou deveria.

Na pauta do filme, estão o envelhecimento e os padrões de juventude e beleza a partir da experiência da mulher numa sociedade patriarcal, e até que limites se tem ido para conseguir um pertencimento. Em tempos de Ozempic e Botox, esses temas nunca foram tão relevantes e estão cada vez mais sendo olhados.

O corpo é o assunto principal do filme. Em Dilacera e em Adágios, o corpo é observado em sua doidice, um corpo surtado —, mas surtado por causa da mente, e esta é que é delatada. É no corpo que ocorre a mutilação necessária para sustentar a demanda da cultura. Mas não foi na mente que essa mutilação primeiro tomou substância?


Assim, a razão é um falo.
Cultuada em seu templo de doutores.
Não.
A razão não é — está um falo
e se distingue apenas por não ser castrada.



Por isso, observo com cuidado como nós mulheres nos formatamos, especialmente no corpo, como nos mutilamos disfarçadas de “estou me cuidando”. Se cuidando para quem, não é mesmo? Em tantas instâncias parece que estamos sendo livres para sermos quem quisermos: ter peitos em abundância, ter bundas novas, ter narizes novos, para sentir-se bem, para a autoestima — é como a coisa toda é vendida.

Pode-se dizer: “mas isso é liberdade, ela fazer do que corpo dela o que quiser, se quiser mostrar sua sexualidade, mostrar, etc.” Mas por que ela, então, também não faz outras coisas, além dessa? Não é uma coincidência estranha: ao nos dizermos “livres” fazemos exatamente o que o patriarcado nos diz para fazer? Não existem outras direções? É sempre essa? Como seria ter sexualidade sem ter que fazer biquinho? Caras e bocas, ou cruzar as pernas assim ou assado? Numa sucessão de clichês medíocres inventados como um script de teatro para essa mulher. E se você não aprender, está fora da jogada. (Já percebeu o tanto de fotos com biquinho que as mulheres tiram? Eu já me peguei fazendo sem perceber, é quase um automático). Como seria não ter que atuar esses clichês, e ainda, ser sexual? Porque a libido é uma força de vitalidade interna — mas é o masculino, o fálico, que tende a vivenciá-la para fora. Ou seja, como a nossa cultura é masculina e masculinizada, ela prega que a libido tem que aparecer fora. Ela pode, claro, ser vivenciada fora. Mas não só. Se a mulher não estiver vestida para matar, de vermelho, digamos, não está sexual. Estaria morta, então?


demi-3



Fico pensando: por que não se vê um movimento de sair sem maquiagem, de não fazer as unhas, de não fazer depilação (como se vê na França, nos EUA, por exemplo). Por que não são exploradas também outras maneiras? Desconfio. A mulher é “livre” para ser exatamente a “boneca” que a mente patriarcal quer? E aí vêm os discursos de “olha como ela está poderosa”. Está? Ou está manipulada, achando que está livre? Está livre para ter sexualidade, para ser puta, se quiser, mas não é a própria puta uma invenção patriarcal? Já que a mulher não é dividida em partes.

À mulher é permitido, apenas, que a “autoestima” more na superfície do seu corpo; dentro, jamais; quebraria a cultura. Assim, é uma pseudo-autoestima, na verdade. A quem servem nossos peitos reformados, nossas bundas wheyzadas, nossos narizes empinados? Resultam mesmo de uma escolha própria? Somos o que achamos que somos? São nossos, mesmo? Ou são ideias de outrem?

Quem está mutilado? Nosso corpo? Ou antes dele, nosso espírito? Nossa própria estima?



— nada é meu
até este feminino é a ideia de um tosco




O TÍTULO.

O próprio título do filme... Substância tanto quer dizer droga, algo que vicia, como algo que tem solidez, que tem corpo. Parece uma boa ponte entre superficialidade e autenticidade. Pode-se usar o corpo como lugar autêntico ou como lugar do falso (“fake”).


VÍCIO.

E isso nos traz ao tópico do viciado: por que Elizabeth continua na empreitada, mesmo vendo o que está acontecendo com ela? O que é que Elizabeth quer e que o sistema oferece de forma tão tentadora? Sim, não é difícil perceber sutilezas de traficante e viciado nessa relação... O traficante pode até ser preso, e deve, mas o viciado vai ter que passar por um ‘reab’ (reabilitação, detox químico), sob pena de achar outro traficante que o proveja com o que tanto quer.


A CULTURA QUE SEMPRE SUBSTITUI O VELHO COM O NOVO.

E não é só com o corpo que nossa civilização é culpada de fazer isso. Fazemos isso com objetos, eletrônicos, carros, casas, etc. Incluindo nós mesmos. Ou seja, uma sociedade que premia a superficialidade — e esse é o tom do materialismo. E que substitui compulsivamente o velho com o novo, numa velocidade que talvez a natureza não dê conta.


SOBRE A DIRETORA.

A corajosa Coralie Fargeat.


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Sobre ela, a WIKIPEDIA diz:

“Coralie Fargeat é membro e uma das signatárias fundadoras do Collectif 50/50, um grupo criado com o objetivo de trabalhar pela igualdade de gênero em toda a indústria cinematográfica.

Ela é fascinada pela ‘suspensão da descrença’ e adora usar imagens e símbolos para expressar algo simples de uma forma poderosa.

Ao fazer filmes gráficos ou cheios de sangue, Coralie descobre que equilibrar cenas violentas com humor torna a violência mais tolerável.

Coralie acredita que filmes que se enchem de homenagens e referências podem afastar o espectador da capacidade de se identificar com o filme. Ela descreve essa separação como “momentos de segundo grau” e opta por ficar longe de referências excessivas. Para poder conseguir isso, ela considera crucial abordar o cinema e a produção cinematográfica com uma visão genuína e sincera, afirmando que ela tenta ‘acolher [seus] personagens dentro das próprias escolhas deles, seus preconceitos, seus excessos, em suas falhas também’.”


O filme foi premiado no Festival de Cannes.

Curiosamente, o primeiro filme da francesa Coralie Fargeat é chamado Vingança, uma película de horror estreada em 2017, onde uma mulher violentada, dada por morta, volta e mata os 3 homens implicados na questão — nesse mesmo ano, nasceu a Lua Negra Cartonera, também por vingança, inspirada em Lilith, mas nascida positivada, que constrói a partir do que deseja expressar. No entanto, demorou 5 anos para eu conseguir escrever Dilacera, com seus poemas de vingança e delação, embora o tema da delação estava lá desde o começo, no arquétipo da Lilith.



Sou uma negra
que esbranquiçou o suficiente
para estar aqui.




O GROTESCO PARA NARRAR O QUE É SER MULHER.

Fico pensando quantas pessoas assistirão a esse filme e pensarão que isso é só em Hollywood, e não com todas nós, como vi ser inferido em algumas resenhas sobre o filme. No entanto, essa “espiral de insanidade e destruição”, como li em um comentário sobre o filme, não é única de Hollywood. Está em todos os lugares da sociedade patriarcal; na terra toda.

O tratamento grotesco e bizarro também me lembrou o filme A Paixão segundo G.H., baseado no livro de mesmo título de Clarice Lispector; o filme explora ao extremo as imagens da barata sendo morta, o bicho morrendo, misturadas com a catarse vivida pela protagonista. Talvez haja uma nova coleção de filmes que, ao tratar dos temas que a mulher vivencia, só apelando para o terror. Não me surpreende e confio que talvez não haja outra forma, pois a experiência de ser este gênero chamado mulher é tão absurda, e Simone de Beauvoir apontou para isso exaustivamente, que “a mulher é uma construção”, que só assim mesmo, no grotesco, no bizarro, na base da insanidade, na base do extremo corporal (sangue, sangue, sangue escorre em A Substância; muitos se retiraram em Cannes, assim como muitos se retiraram no filme do livro de Lispector), que só assim pode-se quebrar aos pedacinhos e aos pedações essa lavagem cerebral patriarcal absurda que é impingida em nós e em todos. Como nos vemos e como nos veem.


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Muitos críticos de cinema estão falando que esse é o filme mais perturbador dos últimos 10 anos. E fica aqui a pergunta: não é estranho que as pessoas assistam tudo o que tipo de filme de violência, tortura, chacina, genocídio, etc. e fiquem até o final? E quando a violência que é a vivência da mulher seja mostrada cruamente, as pessoas não aguentem e saiam?

Não, não é estranho. Só atesta o extremo da violência que o gênero mulher sofre, e é bizarra porque não é apenas uma violência que vem de fora: é uma violência que começa fora, mas que, paulatinamente, vira uma autoviolência. A bizarrice aqui é esse AUTO. Como um "chip" que é implantado e depois funciona sozinho para todo o sempre. Há 6 mil anos vivemos uma distopia e não admitimos. É isso o que o patriarcado é e sempre foi, vendido como verdade e o "melhor destino": a melhor opção. E esse bizarro tem a ver com o mecanismo da construção dessa violência, que é tão sutil e embutido na cultura que não é visto claramente desde que a menina nasce, pois é normalizado, e, assim, o normalizado é um pulo para ser introjetado. Apropriado pela própria bebê, menina, adolescente, jovem e mulher. Aos poucos, como numa lavagem cerebral que atravessa os tempos e as gerações.


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Não foi à toa que intitulei os poemas de pena de Adágios de Uma Escrava, porque é isso o que a mulher se tornou dentro desse sistema de pensamento. Porque o patriarcado é uma forma de pensar. Uma forma de pensar materialista, sempre fora, externalizada e racional. Não leva em conta o que está dentro, a essência das coisas. Tudo plastifica. Tudo é substância para ser moldado e plastificado. Simone de Beauvoir falou que a mulher foi a primeira escrava, antes dos negros, mas essa informação ainda não consegue ser registrada pelas mentes da maioria das pessoas. E pior: Simone diz que a mulher se apaixona pelo seu opressor, que é com quem ela tem que popular a terra, o homem. Os negros foram escravos, mas a natureza não os obrigava a se relacionar com seus carcereiros, embora isso tenha acontecido naturalmente. Não estou diminuindo o terror da escravidão africana, de maneira alguma. Meu desejo é dar um comparativo que essa não é a única escravidão que aconteceu, e que tem uma que é anterior, e que ainda continua, e que de certa forma, por ser velada, ainda passa despercebida. O feminicídio sendo sua maior prova. A escravidão africana só pôde ser possível porque o feminino já estava escravizado, em outras palavras: a natureza estava escravizada, vista como inferior, assim como os animais (e o animal interno), o instinto, a terra, a floresta, o natural, o selvagem, a vulnerabilidade, as emoções, o corpo, suas pulsões, a criança, o bicho, a libido, etc. Tudo isso é o feminino, que não podendo ser corrompido ou controlado, só pode ser amordaçado, preso ou destruído

Talvez A Substância faça uma sangria para limpar esse sangue todo sujo de violências? E assim, substituí-lo com um novo?, pois esse sangue-construído que ainda existe não serve pois está tóxico. Talvez A Substância seja uma transfusão de sangue da mulher, do feminino. É preciso outro sangue, um só nosso mesmo, um que não tenha sido manipulado, um que venha limpo desses condicionamentos, dessas ideias absurdas (de nos tornarmos não-naturais) e só pelo horror do susto isso pode ser acordado em nós?


O DESCONFORTO DE DELATAR: PARTE DA PRISÃO PATRIARCAL.

A diretora Coralie disse, em algumas entrevistas, que não quer adicionar mais uma injunção às mulheres, no sentido de que, agora, além de tudo o que é pedido às mulheres, ainda por cima, que “elas sejam também obrigadas a sentirem-se bem com elas mesmas”, pois o filme trata diretamente dessa frustração da mulher com a própria imagem, claro, imagem perfeita cobrada pela cultura, mas ainda assim, concretamente atuada por ela, que está manipulada por essa mesma cultura.

Porém, tem como escapar de olhar esse elefante no meio da sala? Que a cultura cobra e que a mulher atua? Que são dois lados agindo, e alguém vai ter que jogar uma chave de fenda na catraca da coisa toda? E quem será?

A cultura não vai dar um passo para trás, nem tampouco os homens. É triste e é solitário ser vítima, porque, para a liberdade ser real, há que se dar um passo numa direção diferente, na maioria das vezes, sem ter muita ajuda. Ao menos, talvez, as mulheres possam se apoiar entre si nessa mudança de paradigma que seria o grande “não” que eventualmente precisará ser dito a essa demanda extrema e absurda da cultura pela perfeição da mulher. Repito: PERFEIÇÃO = NÃO-NATURAL. Então, recusar-se a ser não-natural. E aceitar ser natural. Ser natureza. Recusar papéis, recusar privilégios, porque o preço é sempre alto, muito mais alto do que aceitar atuar esses papéis. Já que, uma vez dito o “sim”, o caminho de volta fica muito difícil. E é preciso ter a coragem de não fazer o que se espera de nós.



Sair para tomar
vacina — e —
encher a cara.


Mudar a cultura não será fácil, mas exigirá em algum ponto dar-lhe esse “não” de presente, venga lo que venga, pois, com certeza o nível de sofrimento de se perder da própria identidade não vale o inferno que as mulheres vivem nessa maneira de agora. A solução patriarcal para o mundo, em definitivo, não está funcionando, já que as mulheres estão cada vez mais adoentadas por esse jeito de abordar-se, baseado nesse olhar de fora. É uma coisa que sangra, como o filme de Fargeat. E as mulheres:



Buscam paredes de cavernas,
onde gastar garras ou pintar a sangue.
[...]
Onde há raiva há gritaria no sangue,
agride, usa os dentes, morde desobediente,
deixa rastro de vida: onde há raivas —?




É hora de ligar o olho de dentro. Por mais utópico que alguns venham a dizer que é, não há outra maneira, pois as únicas que podem fazer alguma coisa para mudar o rumo dessa situação são as próprias mulheres: escapar da lavagem, conhecendo-se, cuidando-se, e optar por não ser manipulada, pois como disse uma mestra minha: em toda situação em que há um manipulador, há alguém que topa ser manipulado. Nós já sabemos, através da psicanálise, que estamos todos implicados, sempre, conscientes ou não. Então, estar consciente é o que pode ajudar nesse momento. É juntar a coragem necessária para renunciar aos privilégios (por exemplo, quantas mulheres não foram "tratadas como deusas" por tantos e tantos anos? — mas mesmo nesses casos, a gente sabe que não é bem assim, mesmo essas foram também assediadas, violentadas, humilhadas e desvalorizadas) e, ao fazer essa renúncia, ter também a coragem de se permitir uma vida de mais autenticidade. De naturalidade. Sendo e parecendo quem se é. E isso já está mais do que perfeito.

Sim, é difícil mudar, se libertar. Especialmente, quando estamos encalacradas do jeito que a mulher está nesse sistema, amarrada e impedida de se movimentar (largar os saltos é praticamente filosófico, é profundo, pois indica movimento energético!). Mas tão difícil quanto sair é também participar do sistema: sofrer todas essas violências suga energia vital da mulher.


AUTOCOMPARAÇÕES.

Durante o curso do filme, um dos sofrimentos que Elizabeth experimenta, ironicamente, é que ela se compara com ela mesma — com Sue. A sociedade “melhorou” esse argumento dizendo não devemos nos comparar com os outros, mas com a nossa melhor versão... Será? Será que devemos nos comparar, seja lá como for? O simples ato de comparar não é já dar um valor, um julgar? Talvez comparar seja algo da cabeça, e para o que serve mesmo? Ao se comparar com Sue, sua versão perfeita e irreal de si mesma, tudo o que ela faz é cozinhar uma desgraça.

Inclusive, fiquei surpresa com tantas referências “auto” nesse filme. É auto-ódio, autoviolência, automutilação, auto-aversão. Isso vem de encontro com o que descobri um tempo atrás: não há nada que não seja “auto”, incluindo a autocura. Não é que o fora não exista, ele existe como um tipo de espelho. Porém, num mundo amplamente narcísico como o nosso, ainda é duro para as pessoas verem a autorresponsabilidade como possibilidade real. Mas não é por falta de aviso, Sartre disse há mais de 50 anos, “liberdade vem com responsabilidade, responsabilidade traz liberdade”. Essa máxima ainda não foi apreendida em sua profundidade. O que vivemos é o contrário: a auto-irresponsabilidade nos deixa todos prisioneiros de nós mesmos. Homens e mulheres.


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Assim, de forma crucial, no coração do filme, está a falta de autoconfiança e o sentido de autodestruição de Elizabeth Sparkle (ironicamente, sparkle = “brilho”, mas ela não vê seu brilho interno) que são formas de autoviolência. Coralie Fargeat fala da “prisão do auto-ódio” que cria uma polaridade entre uma superfície onde parece que está tudo bem (fotos lindinhas no Instagram?) e o que acontece por trás das portas fechadas, numa jornada pessoa de autoviolência. Polaridades.


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O TABU DISFARÇADO DE CRÍTICA.

E finalmente, a crítica. De dois homens, a propósito:

Kevin Maher (Times), chamou o filme de “pueril, inútil e intelectualmente enganoso”. Com certeza, ele deve achar a mesma coisa das mulheres.

Nicholas Barber (BBC) disse: “durante a maior parte de suas duas horas, A Substância tem muito estilo, mas não muita substância”. “Por mais divertido e brilhantemente estilizado que seja, A Substância parece um desperdício lento e superficial de uma premissa intrigante”, diz ele. E continua: “À medida que Elizabeth e Sue começam a ficar nervosas, o filme se torna mais divertido e desagradável até que finalmente floresce em uma película de monstros perturbados, inundada de sangue falso e com esquisitices de terror corporal”.

Queria que você pudesse ver a minha cara ao ler isso. Pareço aqueles cômicos do Saturday Night Live, de olhos vesgos e lábios entronchados. Bem, bem, bem... o Barber disse que o filme não tem substância, mas não é que essa última descrição dele é a sinopse perfeita da mulher construída da nossa sociedade? Então, o filme tem substância, pois fala de algo real, que acontece. Eu acho que De Beauvoir diria para ele: “Exatamente, e você que não percebe o que diz?”. Ou seja, a lavagem patriarcal é tão densa que nem quando o óbvio (a respeito da própria lavagem) é jogado na cara, gruda. Especialmente na cara dos homens é que não gruda mesmo.

Assim, faz parte da lavagem patriarcal que não se deve falar disso. Negar. Sempre. (Lembra que isso é uma coisa que os homens aconselham uns aos outros? "Negue sempre"). E, assim, muitos homens descartam o filme. Nada de novo no parquinho, sim? Tanto a diretora como as duas atrizes pisam em ovos ao responder as inúmeras perguntas nas entrevistas: o medo de delatar o absurdo, claro, e receber esse tipo de reação desses dois jornalistas-críticos, sumidades patriarcais certificadas pelo Inmetro (como diria minha amiga Lucia) e especialmente o medo de, no processo, julgar as mulheres também.



eu,
apenas um muro a ser derrubado.




No meu treinamento como terapeuta, e também na convivência com os meus mestres, aprendi algo que me ficou precioso: o inconsciente se fecha perante o julgamento. Claro, é compreensível. Porque dói. Se julgamos, perdemos de ver o que acontece realmente. Porque o que acontece de verdade, sempre dói — embora só a verdade liberte (e exatamente por isso ela dói... se libertar dói, porque se libertar é crescer, como cresce o bebê e dói-lhe os ossos, e recusar-se é atrair dor pior. Já pensou um bebê que não cresce?) Por isso é tão importante o acolhimento. E o acolhimento é a aceitação do que é e como é. Porém, uma vez instituído esse acolhimento, é a oportunidade de abrir os olhos bem grande e não ter medo de ver. E o que se vê não é bonito, mas o processo de ver é libertador.

A diretora Coralie Fargeat diz que o filme “é sobre como as mulheres são e como tudo o que é projetado sobre elas desde cedo molda seu estado de espírito. [...] Do ódio a si mesma e da sensação de que nunca se é boa o suficiente...”

A estapafúrdia experiência de ser uma mulher nessa cultura louca — por isso eu quis falar, por isso eu escrevi, porque a vontade de delatar é maior que toda a loucura. Porque tentar falar do proibido, seja como for, já é subversivo. E falar joga a insanidade de volta para onde ela cabe: ser vista.



Somos o doente
Somos o ridículo
Somos o demente
E ainda assim,
Somos o que existe.





NÃO SERIA MELHOR FAZER TERAPIA?

Seria.

Alguns vão dizer: "Ah, o discurso já conhecido". Sim, também verdade. Há coisas que a cabeça do humano demora centenários para compreender. Por exemplo, tem um filósofo que diz que ainda vivemos em tempos pré-Copérnico, pois ainda não digerimos emocionalmente que não somos o centro do universo — é o Sol. A terapia é outra dessas. Não podemos mais ter medo de falar em terapia, de sugerir terapia, de ir à terapia. Chega da visão interna de si mesmo ter que ainda ser tabu — não joguemos fora tanta Clarice Lispector — e chega de só existir soluções externas para as coisas (o estado, os políticos, as leis, o dinheiro, as plásticas) — sim, isso tudo faz parte e, em sua grande maioria, é paliativo até a gente realmente crescer e fazer o que precisa ser feito. Portanto, chega do excesso de materialismo. Já vimos onde isso está dando.

Pessoalmente, afirmo que ainda não conheço outra maneira de se libertar e de se inteirar de si mesma sem olhar para o que prende, sem criar consciência de si, sem se ver —, mas terapia custa: dinheiro, disponibilidade, dedicação, dor. A essa altura da humanidade, definitivamente, ainda é para uns poucos. A arte pode ser outra maneira, e dependendo da profundidade com que seja feita, é terapêutica.

E curiosamente, falando em terapia, o filme tem pouco diálogo. Bem, Freud cunhou a terapia como “a cura pela fala”. Onde falta fala, sobra neurose? Achei fantástico esse detalhe. O que acontece com o que não é dialogado, falado, compreendido, reflexionado?

Durante todo o filme corre a ideia de que não tem como escapar de si mesmo, assim como a ideia da falta de responsabilidade que ambas Sue e Elizabeth têm com elas mesmas. Responsabilidade essa que também a sociedade não tem com seus indivíduos, porém, responsabilidade é sempre autorresponsabilidade e sempre começa no individual, eventualmente migrando para o coletivo, embora a gente goste de se convencer do contrário.



Vive impaciente e julga com ignorância,
mas existe, é — a mais errada — sou
a mais fraca covardia da perfeita coragem





RESPONSABILIDADE, ÉTICA, FRAUDE E SAÚDE MENTAL.

Talvez a primeira impressão logo depois do filme é ter pena das protagonistas. Coitadas, presas nas catracas do sistema. Sim, claro. Mas não só isso, já que qualquer situação humana é sempre complexa. Acontece também uma coisa oposta. Como seria vê-las como vilãs também? Vilãs e vítimas ao mesmo tempo.

Isso acontece com o narcisismo, que é uma questão de saúde mental, e é por aí que quero entrar: o narcisista é tanto uma pessoa profundamente adoecida, sem chance de cura, que um dia já foi uma vítima (bebê) que ficou com uma sequela, mas que o transforma num monstro ao crescer. O narcisista adulto continua um bebê por dentro, mas enquanto um bebê não pode causar danos a ninguém, já um adulto tem toda uma parafernália para atuar seu narcisismo de forma altamente tóxica. E é por isso que lidar com o narcísico é complexo, são vítimas e vilões ao mesmo tempo. Com toda certeza, precisam de ajuda, mas ajudá-los é ser sugado numa rede de manipulações, inferiorizações e abuso. É uma faca de dois gumes.

Algo parecido eu vejo na auto-imagem adoecida. Por um lado, dizemos que são vítimas de um sistema que exige dessas pessoas perfeição. Isso é certo. No entanto, ao atuarem essa demanda, seja porque razão for, elas propagam, perpetuam e validam esse sistema, que é baseado numa fraude. Novamente, cito a psicanálise, que diz que estamos sempre implicados: tem sempre uma parte nossa atuando, topando, aceitando... mesmo que inconsciente. E a grande sacada da psicanálise é que o que eu faço, é também meu, é também “eu”, é responsabilidade minha, mesmo que eu não me perceba fazendo. E não perceber é estar num estágio infantil de não saber.

Assim, mulheres se tornam impostoras de si mesmas. E isso envolve o princípio da mentira, que é quando algo não é o que aparenta. E isso é perigoso. Quantas pessoas não sofrem ao verem nas redes sociais celebridades “perfeitas” desfilando para cima e para baixo? As pessoas ficam na mesma encruzilhada: ou aceitam ficar “inferiorizadas e feias”, ou optam por jogar o jogo que é um jogo anti-ético, pois envolve a mentira nas aparências, e aí não só vão se destruir, como destruir outros. Pois a mentira é um veneno que corrói uma sociedade inteirinha, como temos visto. No poema abaixo eu chamo essa mulher de FÊMEA PATRIARCAL, porque ela responde às demandas desse macho/sistema. São cúmplices nessa fraude.



FÊMEA PATRIARCAL

reflete e inspira —
espelho ancestral de um macho bobo

inspira a nada — reflete
vontades ancestrais de um macho

reflete nada — inspira
o feminino de um bobo

sofre por estar acompanhada
não consegue ser FEIA

inspira a nada — a nada reflete
nem mesmo seu feminino é seu.





A TRAPAÇA.

Meu fascínio com a psique desse vício — a propósito, que o Eneagrama chama de Vaidade ou Tipo 3 — é que não só esse vício é premiado pelo sistema, como, a meu ver, é uma forma de trapaça parecida com aquelas que os exames antidoping tentam descobrir nos atletas.

O antidoping tenta identificar a presença de substâncias ou métodos proibidos que possam melhorar o desempenho de forma artificial. Substâncias são usadas para que haja alto rendimento, para satisfazer expectativas exacerbadas e para explorar os limites do corpo e do humano.

Ah, são tantas palavras-chave que alinham o Vaidoso com o doping...

Assim, o antidoping existe para que o jogo fique justo. Ou seja, para que a competição seja baseada na honestidade.

Então, aqui está, como o tema das aparências, na nossa cultura, é permeado por essa polaridade da honestidade e da fraude. A cultura quase por inteira, em todas as suas partes, brinca com essa dupla, que falada de outra forma muito mais simples, não é nada mais que a verdade e a mentira. A mente patriarcal é baseada nesse duo, por isso Claudio Naranjo diz que o patriarcado tem um quê de canalha. A canalhice é oxigenada pelo culto da mentira — que, pior: a mente é esperta o suficiente para disfarçar que mente — portanto, “diz que sempre fala a verdade”. Como a ciência, por exemplo, ou as religiões. As duas passíveis de erros, mas esse aspecto não é lidado dentro delas. A ideia de perfeição, novamente: seja perfeição Divina ou perfeição Racional. A partir daí, a manipulação da verdade cria todo o resto.

Uma das características da mente é que ela é simbólica, e essa é uma qualidade fabulosa — permite-nos criar histórias, narrativas —, porém, também quer dizer que ela pode inventar o que quiser.

Por isso, há um clichê: a mente mente. Clichê este o qual resistimos ver como realidade, pois a mente não quer ser delatada, obviamente. Não é o corpo, nem tampouco o sentimento, que criam essa situação (de mentira), já que o corpo não consegue mentir, e as emoções apenas podem ser manipuladas pela mente. A mente, então, confunde as emoções, e amordaça o corpo (porque não tem como confundi-lo, ele sabe o que acontece, pois é instinto). E aí está, talvez, a raiz dessa deformação do eu que acontece na nossa sociedade. Corrupção e mentira correndo em todas as veias do tecido social, e chega até a superfície dos corpos.


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Partindo daí, Elizabeth, para não ser cancelada pelo sistema, move-se com certa intenção de burlar esse sistema, mesmo que de forma inconsciente (o que não tira a sua responsabilidade, novamente a psicanálise, porque é Elizabeth mesma quem atua o movimento, então, há algo seu, um desejo, uma ambição, também implicado nisso, mesmo que esteja manipulada pelo sistema). Ou seja, o sistema é anti-ético com ela, e ela é anti-ética de volta. O sistema mente para ela: “você não tem valor” (e isso sendo uma inverdade, é por isso mesmo uma manipulação, pois todos têm valor), e aí Elizabeth mente de volta: “fiz uma plástica, agora tenho valor”. O sistema aceita, ela aceita, e eles se entendem, até que... em quem vai aparecer sequelas e consequências num futuro próximo, no sistema ou nela? As mais óbvias serão nela. Essa situação, à primeira vista, pode ser vista como: “Coitada, rouba para comer”, no entanto, nem todo mundo rouba para comer; alguns acham outras alternativas e essa matemática do quem-é-quem é complexa, mas não dá para tirar a responsabilidade inteiramente da pessoa e jogar toda no sistema — são um par e dá match — porque isso seria também tirar a força e o livre-arbítrio da pessoa, que faz escolhas, mesmo que adoecidas mentalmente; estar adoecido mentalmente aumenta as chances de fazer más escolhas. Mas ainda assim, são escolhas, mesmo inconscientes.

O sistema não presta, isso sabemos, mas há quem morda a isca e decida jogar esse jogo, jogo este que não é justo, porque tudo nele é fake. Quem topa jogar, mente. Para si e para os outros. Essa simbologia é rica no filme que se utiliza extensivamente de próteses, em mais uma ironia, para aumentar seios, bunda, arredondar uma Sue à perfeição (que não existe, por isso, as próteses — nesse tema, o cachorro corre atrás do rabo constantemente, quanto mais próteses, mais próteses serão necessárias). O simbolismo: tal qual no filme como na vida. Se o sistema pede impostura, as pessoas jogam o jogo da fraude, e isso não importa a área da vida.

O mais perigoso nessa área da autoimagem é que, ao topar tudo para sair na frente, algumas coisas não poderão mais ser desfeitas no corpo.

Assim, a base desse vício sendo uma busca por ser amada, em nome disso, a pessoa trapaceia seu caminho até esse amor, que não chega nunca, tampouco, e isso alimenta e é alimentado por um sentido de competição e uma ambição que fazem perder a medida.

A Substância está sendo chamado do filme mais doentio dos últimos 10 anos.



POEMA LOUCO OU
POEMA QUE DÁ CADEIA —
POEMA-SANTA-SIMONE-DE-BEAUVOIR
mas o que é uma mulher?





A SUBSTÂNCIA, A AUTOPIEDADE E A AUTOVINGANÇA.

Dilacera e Adágios se posicionam exatamente nos polos opostos da submissão e da rebelião, e eu sempre tentei imaginar qual seria essa ponte que harmonizaria essa oposição, já que duas polaridades geralmente falam da mesma coisa, uma pelo avesso da outra, ou seja, são o mesmo lugar, e ainda são extremos. Qual seria essa ponte, esse espaço mais para o meio do espectro que pudesse ser um lugar de integridade para a mulher?, onde ela não estivesse apenas refém das raivas e das penas?

Mas ao refletir sobre esse filme vi duas coisas.

Uma delas foi que a Substância parece ser uma possível ponte para muitas mulheres. Nem rebelde e fora do sistema, nem impotentemente dentro do sistema. Porque a mulher que toma a Substância não se deixa levar nem pela raiva, repudiando o sistema e pulando para fora dele, nem fica nele desempoderada, chorando pitangas. Ela escolhe jogar o jogo: é bonita que você me quer? é nova? é com cara de deusa? Ela age, ela escolhe uma terceira coisa. Nem acusa ou delata, nem se entrega. Ela vira o sistema, fica igual.

E a outra coisa que eu vi depois disso foi que, NÃO, a Substância não é a ponte, pois é mais do mesmo, só que adulterado, grotesqueado, os extremos intoxicados e disfarçados. Disfarçados é uma palavra boa aqui, porque não vimos que para jogar o jogo há que se fraudar, se disfarçar, “se fakear”? Então, a Substância parece ser a resposta inicial — e esse processo literalmente aconteceu com o meu pensamento, à medida que eu refletia sobre isso — e esse é o requinte de crueldade da Substância: é a raiva vira autoraiva; é a pena vira autopiedade. Não é mais vingança, é a autovingança. Não é mais submissão, é autossubmissão aos próprios desejos, que definiria qualquer vício.



Ó mulher virulenta, teu nome é Ódia
ou ao menos assim te conhecem na cidade.
Na cidade que morre sem te ver atuar.




Num twist mortal — e isso no filme é literal; Elizabeth e Sue morrem no final — a própria substância esverdeada se disfarça, inicialmente, como num espelhamento do que também faz Elizabeth, pois é isso que ela também quer se disfarçar, ser o que querem que ela seja, para que ela possa reaver seu lugar ao sol e ficar em paz novamente. Mas essa paz não pode existir porque não há paz onde não há identidade. E então, por um momento passageiro, parece que ela conseguiu sair da condenada polaridade: se vingar ou se submeter.

Mas não.



Há brava diferença, há brava marca
entre ódios e ódias. Escolho as ódias
porque abrem conversas para se enraivecer contra o leite.




No fundo, Elizabeth tanto tem pena de si mesma como se odeia violentamente — como se dissesse: “Ah só quero que me amem, e se não me amarem, me rasgarei todinha” — como se isso fosse algo que alguém pudesse fazer por nós — tanto nos amar, como nos matar — mas, numa cultura narcísica como a nossa, ser amado pelo outro é o que faz sentido — como o bebê, para ela ainda não faz sentido se amar, é o mundo que lhe dá tudo — o mecanismo do “auto-” está desligado. Tudo é o outro, tudo é projetado. Porém, o mundo não existe, não é mesmo? A Substância, então, toma a forma da terceira opção, nem pena, nem raiva, e assim, é uma opção que não existe, pois está no negativo, pois significa a morte, pois não há solução, não ainda. Nesse circo, achando que consigo fugir da pena de mim mesma e da raiva de mim mesma, eu me contamino e contamino o mundo todo.



melhor poder falar: que está aqui
(ou que não está).




Então, enquanto não há solução, é em um dos lados, ora cá, ora lá, que se pode gritar ou chorar, acusar ou desmaiar, delatar ou murmurar de fraqueza — opções talvez menos viciantes e mais reais. Nelas, algo se expressa, e não é fraude.



Deve ser um tipo de amor por si própria,
querer ser livre.




Curioso: eu disse no início que o livro-duplo foi impresso um nas costas do outro. Sue nasceu das costas de Elizabeth. Dilacera e Adágios são colados pela espinha. Dividem uma única lombada — e esse é até um termo que faz parte da anatomia do livro. Aqui, o livro também é um corpo.

livro-duplo de pé


Na caixa onde veio a Substância tinha uma plaqueta que dizia: “Lembre, vocês são uma só.”


imagem do filme



DESCARTE DOS CORPOS.

Bem, não vamos nem entrar no assunto sobre como o sistema materialista compreende corpos como objetos a serem usados, descartados, deformados ou formatados. E quando digo o sistema, são as pessoas que o fazem. Ficou amplamente aceito que se pode mexer na ordem do corpo. Como se ele fosse inerte, morto e não reagisse. Faz-se o mesmo com a natureza. Porém, o corpo responde, assim como a terra reage. Nem corpo, nem terra são vistos como veículos sagrados; não são vividos ou pensados como entidades — entidades com consequência. No filme, quando Sue ou Elizabeth não estão usando os corpos, elas os jogam no chão frio do banheiro ou os escondem atrás da porta. Não colocam seus corpos na cama, ou no mínimo, numa cadeira, ou ao menos, um lençol ou um cobertor no chão antes de deitar. Algo que acolha esse corpo. Não. Eles só servem para a atuação social.


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E esse tema aparece no livro-duplo também. O usar, abusar, manusear, como um objeto, o corpo. Como se ele fosse algo sem consequência.



não querer mais apenas:
ser vaso. quer
ser abençoada e gente





MULHERES CÓSMICAS: CORPOS CÓSMICOS.

E em mais uma sincronia com o filme, ambos os livros, Dilacera e Adágios, trazem ilustrações minhas da coleção Mulheres Cósmicas, que foram downloads meus de corpos energéticos femininos, cada um mais diferente do que o outro, e cada um com sua identidade própria, manifestas através dos nomes que vieram junto com as ilustrações. Cheque algumas abaixo.

Pensando todo esse tema, eu fico pensando o que tanta deformação estética na superfície das mulheres fala do que está passando por dentro delas e como chegamos aqui? E o quão grave é isso: mulheres não podem simplesmente ser, então? Elas têm que ser qualquer coisa, menos elas. Ou seja, é grave. E é uma monstruosidade o que se faz com a psique da mulher — claramente refletida fora. A deformação do corpo é, portanto, também uma deformação da psique. Imaginem o sofrimento psíquico que toda mulher vive. Não é à toa o tanto de doenças que as acometem. Pois, nessa cultura malsã, estão e são feitas para estarem adoentadas.

No meu entendimento, as mulheres cósmicas são novas propostas de corpos femininos. E propostas energéticas, portanto, propostas de cura. Múltiplos, livres, soltos, fora dos padrões, nem mesmo mulheres parecem. Têm quantos braços querem, têm quantas pernas desejem, têm várias cabeças. E tem formas que não têm nomes de corpo. Mas, curioso, dessa forma, pode-se até pensar esses corpos a partir de duas visões opostas: bizarros ou libertos (embora, até agora, todas as que as veem encantam-se com a energia das mulheres cósmicas). Essas mulheres cósmicas não parecem estar se contorcendo de dor. Mas, vale a pergunta: será que o extremo da deformação por que passam os corpos das mulheres (ou dos homens que queiram parecer mulheres), e o qual está ficando claro, neste momento, dentro da cultura pode ser parte do processo de construir outros corpos? Uma destruição para uma reconstrução? Será que esse é o caos onde temos que ver a sombra para chegar na luz? Assim eu espero que seja.


mulher cósmica 1

mulher cósmica 2

mulher cósmica 3

mulher cósmica 4

livro Adágios de Uma Escrava

livro Uma Mulher Dilacera o Patriarcado




meu cabelo extra, meus cílios extra, meus peitos extra
a sola do salto — tudo é “extra-eu”
e não foi ideia minha




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Maceió, 16 outubro 2024, véspera de uma super lua cheia em Áries.