Conheci primeiro a poeta. Por e-mail. Uma mensagem e um pedido para um café e uma conversa sobre poesia. E fiquei me perguntando quem seria essa pessoa tão interessada em poesia e em uma opinião de uma desconhecida para ela? A recomendação do contato veio de um amigo comum: Ricardo Cabús. Estava, então, explicado o mistério. Conversamos por telefone — ou por WhatsApp, já nem lembro mais. E Ana Karina Luna me trouxe seu livro amarradinho com um cordãozinho vermelho, delicada amarra em papel que revelava, inicialmente, um cuidado de designer que ela é, com um diferencial de uma amostra de poesia, desenho e uma vontade enorme de acertar — nos versos, nos desenhos, na sua busca. Li. Reli. Anotei coisas e marcamos o café. Daí nasceu um começo de amizade poética, regada a conversas intermináveis sobre tantas coisas, da experiência dela, da minha, da poesia, da arte, da astrologia — todas as coisas que unem pessoas de interesses diferentes e com tantas coisas em comum.
Ver Saindo da Piscina de Éter pronto é uma alegria grande. E observar mudanças e descontinuidades da primeira versão, lida para aquele primeiro café, é muito bom. Falar desse livro de Ana Karina Luna me alegra, porque a poesia é um laço eterno entre as pessoas. Nesses poemas que contam histórias estrangeiras e cotidianas, descobri outros sentidos para palavras que usamos no dia a dia que parecem renovadas na linguagem emergencial, urgente, paradoxal dessa nova voz na poesia alagoana.
Posso falar de muitas coisas desse livro, mas não quero antecipar o aconchego da leitora (do leitor) a essas palavras que dizem muito ao coração, às vezes brigando com ele, pelas suas intensas recaídas diante do óbvio que pode nos machucar muito, nos nossos retornos e desvãos. Vou falar do que senti — poesia é para sentir — ao ler esses poemas de uma forma bem geral e apontar algumas nuances que chegaram bem perto da minha pele, traduzindo o sentimento dela, da autora, como se também fosse meu. Poesia é assim. É o nosso sentimento expresso na palavra do outro. Muitas vezes essa reação é incômoda, afinal, o outro está dizendo de si ou de mim? De nós, como diria o carteiro de O Carteiro e o Poeta, ao roubar o poema de Neruda para sua amada. Assim, pretendo dizer algumas coisas que me tocaram nesse livro de estreia de Ana Karina Luna.
A autoria feminina hoje tem uma realidade forte na literatura brasileira e Ana Karina Luna pede licença para apresentar seu livro a partir de três poetas, duas brasileiras e uma norte-americana. Adélia Prado, Hilda Hilst e Emily Dickinson. A primeira abre o livro. A fala da poeta mineira tece um questionamento sobre o olhar que muitas vezes se equivoca e percebe o outro (a outra) em lados que não são devidamente claros. A aparência das coisas pode mascarar o que de fato se é. Pode-se, aqui, entender os poemas como presságios e olhares do que não se é de verdade?
Hilda Hilst abre a primeira parte do livro, intitulada “Presságios” e aponta para o nosso olhar que precisa se desarmar para olhar o outro. Nesse pedido a poeta alagoana faz um apelo à sua leitora (ao seu leitor) que a olhe de olhar lavado, buscando enxergar, nas suas palavras, a revelação de uma pessoa que se expressa abertamente e com o desejo sincero de mostrar-se, de desnudar-se através de uma voz que se revela, que não quer se esconder. Isso tem um peso. Hilda Hilst é uma escritora maldita no Brasil — exatamente porque não se escondeu. Seus poemas são atos de coragem em busca de muita coisa: de Deus, do ser que ela é, do que ela quer do outro. É isso, provavelmente, o que Ana Karina Luna quer?
Emily Dickinson abre os poemas da segunda parte do livro, chamada “Do Amor” e, aqui, o foco é uma estrangeira, pouco ouvida durante seu tempo de existência, a falar do Vesúvio, do Monte Etna e de Pompeia. A erupção de um vulcão, uma cidade petrificada na história e a memória guardada em todas as coisas. O que ficou guardado sob as cinzas precisa vir à tona, é isso que a leitora (o leitor) precisa perceber?
Mas o livro dessa nova poeta que se apresenta, traz outras novidades. As duas partes do livro são ilustradas pela própria Ana Karina Luna. Seus traços são diretos, delicados e mostram cenas do cotidiano através de flores, bichos, objetos e também de duas luas, em desenhos que se insinuam, ora esboçados ora mais nítidos, marcando coisas e símbolos que aproximam e afastam masculino e feminino, conforme a história contada pelos poemas desenrola-se.
Amor, paixão, comando, controle, o mar, sexo, palavra, poesia, mel, luta e também dor que mescla a morte — morte de coisas velhas que precisam morrer no ser para que este possa trazer o novo, em um renascimento consciente e buscado pela poeta que se quer inteira, na sua luta constante com a vida.
Até poder-se-ia dizer que os versos de Ana Karina Luna são intimistas, autobiográficos, ainda que uma autobiografia fictícia, porque nenhum/nenhuma poeta diz nada apenas do outro. Tudo parte de si. Mas na escola por onde caminhamos e por onde nossas trajetórias desenrolam, tudo pode ser nosso e pode ser do outro. Por isso disse, no começo, do incômodo de certos poemas dessa coletânea que diz muito de mim, ou de qualquer um/a de nós.
Assim, quero dizer que os poemas trabalham temas que são caros ao ser humano que busca se conhecer, seja em que circunstância for. No caso desse livro, sua poética traça ideias que descombinam, mas repercutem, porque são parte de quem está na vida e vai vivendo sua busca corporal, ainda que queira mais. A consistência dessa caminhada ainda está fora do ser; está, muitas vezes, no tempero artificial do “amor” descolado, que é parte do que é jovem nas pessoas. Em ‘Presságios’, por exemplo, há um poema (“Com medida”) que remete casualmente aos amores clássicos (e trágicos) de um Shakespeare, ao falar em rouxinol e cotovia, remetendo a Romeu e Julieta, mas o foco apesar da tragicidade, está na brincadeira do título que, quando lido, não afasta as palavras, mas ao nosso olhar na página, revela a separação destas — “com” e “medida” —, que expressam a desmesura da paixão. Naturalmente, nenhuma paixão é comedida. Assim, as palavras de cada poema precisam também ser olhadas para ser compreendidas.
Essa é outra novidade do livro de Ana Karina Luna, pois o tipo “normal” de letra é apenas mais um utilizado para os poemas. Há nessa escolha um indicativo de que os poemas podem ser lidos de forma diferente. Cabe à leitora (ao leitor) uma avaliação do que a poeta quer e onde quer chegar com suas diferenças para o nosso olhar, para o nosso sentimento.
Alguns poemas são cheios de contradições e paradoxos. Um exemplo é “Polaridade”, que traz um “quase” que ameniza as palavras machistas presas ao pensamento que fala sobre a família, que educa as mulheres para comportamentos conservadores, aceitação de posse do outro. Essa voz que fala disso encarna uma dúvida: para quem ou por quem fala o eu lírico? Outros exemplos surgem em vários poemas curtos, quase aforismas que expressam o fato de que o ser pode se contradizer em seus desejos. Por consciência de que pode se machucar, mas mesmo, dentro da contradição, consciente disso, segue em frente, pronta para ser machucada. É o ser humano que parece não se cansar desse limite do desafio da dor em si mesmo.
As imagens dos poemas em “Do Amor” são muito boas: o vento, o fósforo, a paixão, o mar; e uma história de cotidianos novos e outros. Os temas falam de muitas situações conflitantes, de uma quase crise existencial. Alguns são bastante incisivos. A linguagem torce um pouco a forma habitual de se falar. A pontuação por vezes atravessa a leitura e pode funcionar como um impeditivo, criando obstáculos para a leitura. Mas essa pontuação desigual é estilo que remete a poetas como a própria Emily Dickinson, uma musa inspiradora da autora do livro. Mais um chamado de atenção na leitura desse rico livro.
Essa parte do livro fala de posse, de subalternidade, da paixão e do amor. Há poemas que traçam uma trajetória que indica certas violências às quais o ser que ama pode submeter-se. Falo especificamente do poema “Luta”, cuja imagem de cacos de vidro reverbera na pele e o desejo de retorno a esse ser que agride, está presente nos versos inicial e final. A sedução da palavra, ainda que poética, pode ser violenta.
Por fim, quero falar do poema que mais gostei dessa coletânea que trata do imenso desejo do ser por se construir na poesia. “Se tudo me faltar”, ilustrado pelo balde derramado, mostra a capacidade da poeta de se reconstruir na poesia:
O dançar poético para uma voz que não pode falar, remete à dança de David diante do seu Deus. O deus aqui é a arte. É o amor. É a palavra da poesia. É a palavra da poeta que chega. É dança que nos apresenta os seus gestos, a sua luz inaugural. Que essa nova poeta seja muito bem-vinda.