Embora eu não lembre exatamente quando o desencanto do Natal começou para a minha pessoa — deve ter sido dentro dos últimos 20 anos — eu fui assistindo meus olhos abrirem em câmera lenta para os detalhes da noção de "natal". Mas pensando melhor, eu acho que uma agonia sempre existiu, em mim, com relação ao Natal, só não era consciente.
Engraçado é que agora que falei isso me lembrei que a criança passa primeiro pelo encanto do Natal, sua magia de história infantil: um personagem de barba branca, tons de fábula e cheirinho de mitologia viaja pelos céus do planeta entregando presentes que são deixados numa árvore iluminada dentro de cada casa. E de onde será que vêm esses presentes? É uma pergunta da vida prática, eu sei, uma pergunta desmancha-prazeres, mas como esquecer que tudo neste bendito planeta precisa ser comprado com cédulas, moedas, pix ou tarjetas plásticas para ser adquirido? Nem comecei ainda e já não me contenho: que historinha mais maravilhosa para a saúde do capitalismo, sim? Por ela se encantam todos, não só crianças. Acredito que os Pets devem saber o que é o Natal também, hoje em dia.
Depois disso, então, passam as crianças por um pequeno desencanto que é descobrir que o Papai Noel — o personagem de barba branca — é o próprio pai ou alguém da família. Mas isso nem de longe desbanca o Natal na cabeça das pessoas. É só um detalhe, e pequeno. Tudo bem, era o pai ou a mãe, ou quem cuidava que deixava o presente. Mas todo o resto continua. Bola para frente na mitologia do Natal.
E aí tem um terceiro desencanto, e por esse não sei quantas pessoas passam. É o que se sucedeu a mim, especialmente depois que fui morar nos EUA. Imagine, lá o antro do Natal, eu diria no bom e no mal sentido. Mas era tanto presente, tanto presente, tanto presente que acredito que isso desligou algum interruptor dentro da minha cabeça. Não era possível que isso fosse o que se acha que é. Apenas magia...
Maceió-Disnelândia
Tem um outro detalhe pessoal: eu criei uma alergia a ganhar ou dar presentes no modo automático. Com o tempo fui vendo que não me apetece comprar presentes “on demand”; comprar porque sim, comprar porque a cultura diz. Com relação a isso, acredito que há, na cultura do mundo inteiro, uma compensação que acontece (talvez inserida pelo capitalismo) que é substituir a interação espiritual (dar atenção, olhar nos olhos, conversar, cozinhar juntos, conviver, dar e receber amor) com a interação material: presentes.
Pensando por aí, se for verdade que realmente fizemos essa troca de afeto emocional para "afeto material" dentro das nossas cabeças, ou seja, presente no lugar de presença, então, imagine o tamanho do adoecimento geral, quando se olha o tanto de presentes que se compra.
E como todo bom vício, nunca basta. Assim, a cada ano é mais, e mais, e mais, e mais. As lojas têm metas cada vez maiores, e as propagandas não poupam lugares ou noções. Absolutamente tudo é usado para que o Natal seja um sucesso de vendas total.
E não é estranho, que o Natal que se diz uma data tão espiritual, tenha virado uma das datas mais materialistas do ano? Acho que essa foi a minha primeira sacada: algo cheira mal aqui. Olha, eu não me dou bem com hipocrisia e com o tempo foi ficando difícil de sustentar a fábula do Natal. Porque é uma fábula distorcida.
Não tem coisa mais linda do que uma fábula. Porque ela é o puro poder da imaginação. E a imaginação é o espiritual em nós. Está dentro e não pode ser pegada. Fabular é buscar no sonho as verdades sobre tudo, e esse é um exercício espiritual. Inclusive é visitar o mistério sem ter que explica-lo. Mas a coisa fica feia, a meus olhos de escritora, de amante das fábulas, de cuidadora delas, quando o poder das histórias é usado para entorpecer, emburrecer, manipular, viciar ou corromper as pessoas — e ao invés de libertar, aprisiona.
Uma fábula que visa o gasto e o material? (Hum... todos os escritores de valor se remexendo dentro da tumba).
Deve ter gente que se endivida, e muito, durante o Natal. Não duvido disso. E passa o outro ano pagando. Curioso, não é? Tem coisa mais aprisionante do que dever dinheiro?
Olhando com atenção, vê-se que o Natal virou uma data complicada para muitas pessoas, que sentem a ansiedade crescer à medida que dezembro toma corpo. Quem não estiver bem encaixadinho dentro da fábula... sofre. Mas esse ainda está, de certa forma, sadio, pois sofre mais lucidamente. Agora, quem está bem encaixadinho dentro da fábula, fazendo tudo como manda o figurino, esses preocupam. Então..., mas que fábula é essa que exclui, aliena e angustia? Foi com esse tipo de pergunta que eu comecei a desconfiar da sanidade da situação.
Pelos últimos 20 anos meus olhos observaram os natais. Olhavam direitinho. E cada vez mais eu não gostava do que via.
Bem, faz alguns anos que tento pular desse carrossel natalino. Como essa é uma festa de família, ela dificulta muito as pessoas pularem fora. Só as mais intrépidas e corajosas conseguem e eu sou de uma intrepidez e coragem lenta, do tipo que precisa se desenvolver. Mas eventualmente chega.
Esse ano, houve uma oportunidade familiar que se formou e houve uma intrepidez interna que surgiu. Eu juntei as duas e tomei coragem de realizar um sonho antigo: passar um Natal do meu jeito: sem presentes, sem ícones natalinos (com exceção das luzinhas, que eu já usava lá em Seattle o ano todo, na minha sala — porque eu não vivo sem fabular e sem poesia), e sem comidas tradicionais — e mais importante, sem comidas feitas por outras pessoas que eu nem conheço. Sabe a coisa de encomendar o peru de Natal, e aquele arroz de passas? Eu fico sempre pensando na energia de quem cozinhou aquilo.
Minha amiga Lucia já tinha me dito que ia passar o Natal sozinha. Já quando ela me falou eu vi uma oportunidade. Eu cheguei a dizer que se eu não tivesse a minha família eu passaria com ela, e que a gente faria um Natal diferente. Com uns quinze dias eu soube que meus pais iam passar o Natal fora. Eu não contei tempo para realizar o meu sonho: e assim uma outra fábula se mostrou possível.
Elvis salvando as plantas, a despeito do tema da música.
E assim, nós combinamos. Zero presentes, zero ícones de Natal e zero comidas encomendadas. O presente seria a presença, a fábula e a magia ficam por conta das luzinhas e a comida “nois cozinha”, topa? Lucia topou. A gente combinou de deixar rolar soltos os assuntos de astrologia, energia, terapia, autoconhecimento. Esse item é um luxo para mim, não é em todo lugar nessa sociedade hiper cientificista em que eu posso conversar sobre a minha forma de ver a vida. A forma mística de viver é incompreendida. Inclusive, quando falo, sou muito desacreditada por algumas pessoas. É impossível ficar à vontade em certas situações. Bruxa sofre, mas não é de hoje, portanto, tenho as minhas ferramentas.
Bem, demos uma rasteira no Natal. Fizemos até um “pré-natal” uns 4 dias antes, e que foi tipo uma happy-hour aqui no jardim para olhar as luzinhas e conversar sobre o Solstício de Verão, que estava para acontecer no sábado dia 21, dois depois da nossa happy-hour e dois antes do Natal. No fundo, no fundo, o tempo todo eu estava celebrando o Solstício que é a real data de fim ano.
Aqui deixo, brevemente, a verdadeira história do Natal — e pergunte a qualquer historiador lúcido —, é que o Natal foi uma data inventada ao redor da data do Solstício (mas não na mesma data, claro, pois a ideia era enfraquecer as celebrações do Solstício), já que o Solstício é o verdadeiro fato que existe pois é onde a natureza atinge um ponto de volta: a Terra atinge sua angulação máxima em relação ao Sol, e um dos hemisférios receberá os raios do Sol por mais tempo nesse dia, se configurando o dia mais longo do ano em um hemisfério e o dia mais curto do ano no outro, e vice-versa em 6 meses, pois existem dois Solstícios durante o ano. E isso acontece porque o eixo de rotação vertical da Terra, chamado o Eixo Polar (que produz o polo Sul e o polo Norte) inclina-se a 23° como aprendemos nas aulas de ciência. O que tivemos agora dia 21 de dezembro no hemisfério Sul é o chamado Solstício de Verão, o maior número de horas de exposição ao Sol acontece para o hemisfério Sul e depois daí, os dias começam a se comprimir.
Só aí já tem pano para manga para nos humanos fazermos uma análise. Obviamente, eu vou direto na metafísica disso, pois tudo o que acontece na parte física está também acontecendo em todas as dimensões: emocional, espiritual, biológica, energética, quântica, etc. No dia do Solstício é como se um pêndulo alcançasse sem ponto máximo, e dali ele precisa voltar. Se prestarmos atenção haverá sempre um tema na vida da gente, ou por dentro da gente, onde, ao redor do Solstício, não dá mais para continuar naquela direção: algo se esticou ao máximo da nossa capacidade e um limite se mostra. É hora de respeitar esse limite e dar passos para trás para restabelecer uma harmonia onde não precisamos nos esticar tanto, nos sacrificar tanto. Ora, o meu exemplo é óbvio: o Natal não dava mais para continuar sendo como vinha sendo.
Além disso, imagine, nesse dia, um dos hemisférios chega no ápice do recebimento de informações do Sol. A luz que vem do Sol não são meramente “raios solares” como os ingênuos humanos acham. É informação complexa fora das linhas de tempo, é código, e é consciência. No 21 de dezembro temos, aqui no hemisfério Sul, o maior número de horas expostos à luz solar, o que quer dizer que é uma enxurrada de informações, atualizações de DNA, potenciais de insights, entendimentos, correlações, portais e curas. Os antigos sabiam disso e celebravam de forma a ritualizar conscientemente — e aqui está a palavrinha mais quântica que existe, pois o quântico diz que temos que estar envolvidos pelo poder da presença para participar lucidamente — para potencializar a troca de informações que se dá. Lembrando: tudo é energia e energia é código, informação. Não são só os computadores que funcionam no 010101... e isso aí é pouco comparado em como nós funcionamos.
A porta como portal, com luzinhas LED.
Voltando para a paródia do Solstício: o Natal. Quando a loucura das religiões começou, houve uma tentativa intensa de apagar e acabar com as práticas milenares e sábias que existiam e que eram profundamente conectadas à sabedoria da natureza, e por assim dizer, do cosmos. Isso era tão forte que as religiões não conseguiam acabar com elas. Eles as chamavam de “pagãs”, e essa palavrinha ficou com uma conotação de algo ruim, que não tem valor, como se valesse “menos”. Nada mais longe da verdade. Nas práticas pagãs, ou seja, naturais, era onde estava a sabedoria suprema do espírito humano, que juntava corpo e alma num só lugar. A mania das religiões de criticar o corpo e chamá-lo de pecador e enaltecer e separar o espírito desse corpo criou uma neurose horrível para a humanidade: uma verdadeira desintegração do ser. Eles, sim, os pagãos, conheciam esse mistério uno, e não as religiões. As religiões sendo criações mentais, e por isso, equivocadas — que é tudo o que a mente pode fazer ao tentar chegar perto do mistério: se equivocar. Esse equívoco tem causado extrema violência no mundo. A matança do que se chamou “caça às bruxas” matou crianças, homens, mulheres, idosos aos milhares. Qualquer pessoa que fosse minimamente relacionada com qualquer “atividade estranha” era primeiro torturado (para confessar sabe-se lá o que) e depois assassinado. Em todos esses casos, eram atividades naturais, perfeitamente saudáveis, ligações profundas com a mãe natureza —, de fato, estamos agora como humanidade tentando voltar para essa real “religião”, que eu melhor chamaria de uma conexão espiritual do dentro com o fora, que os indígenas têm e outros povos originários nunca se esqueceram.
Eu não esqueço, viu, e realmente não perdoo o que foi feito. Quanta ignorância. E depois, ver ser colocado no lugar dessas profundas práticas naturais, o Natal... é demais. E é demais para muitas pessoas. Temos memória de DNA, viu? Isso tudo está marcado em nós. O nosso corpo sabe o que o Natal é. Sabe que é uma intrusão, uma imposição. Talves a ansiedade de muitas pessoas falem disso?
Vamos à realização do sonho, portanto, já que nunca é tarde para regatar-se.
Nosso jantarzinho do Natal-fora-do-Natal foi aqui no meu templo. E o menu foi o seguinte:
Lucia fez um Creme de Camarão com Macaxeira
E eu queria porque queria fazer umas Tapas Espanholas. E, assim, eu fiz três tipos de Tapas:
Tâmaras recheadas com Linguiça de Chester e envoltas em Bacon:
A receita original pedia linguiça de chorizo, mas não achei. Como a Lucia originalmente queria comer um chester... Essa receita é exótica demais. Deliciosa, não leva nada além disso, nenhum condimento, só a intensidade dos ingredientes principais. São fritas na própria gordura do bacon até cozinhar o tantinho de linguiça dentro das tâmaras. O sabor é um intenso entre o doce da tâmara e o salgado do bacon. Lucia adorou. Tenho certeza que esse deve ser um preferido de Dionísio. Puro desfrute e bem pagã.
Bruschettas com molho fresco de Tomates Cereja com Prosciutto e Nozes quebradinhas:
A receita original era com Queijo Manchego (que seria uma versão espanhola do nosso queijo do sertão), mas eu não como nada com leite animal. Coloquei queijo do reino em algumas delas para a Lucia, pois eu já tinha aqui em casa.
Costelinhas “Esmaltadas” no Xerez: xerez é um tipo de vinho fortificado, licoroso, típico da Espanha. Eu usei um vinho tinto no lugar. Lucia também adorou. Olha, essas costelinhas levaram muita coisa. São dois molhos. Um para assa-las, por 2h, e o outro para esmalta-las, depois que estiverem prontas, por 15min, antes de servir.
Foi pagão, sim. Tudo forte, tudo com tudo, e feito à mão. Eu e Lucia fizemos nossa sessão de terapia como sempre acontece quando conversamos e, cansadas, fomos dormir, pois eu mesma cozinhei o dia in-tei-ri-nho. Estava com os pés doendo, mas profundamente enraizados na minha pequena cozinha. É sempre um luxo poder viver ali muitas horas. Com música, com vinho, com os passarinhos, com meus sinos conversando comigo e com o vento.
E isso tudo me deu uma ideia: e se ano que vem eu fizer uma festa de Solstício? No dia 21? Começar essa tradição de reencontro com o Sol já que o Natal cristão nos trouxe essa perda considerável: as informações do Sol vinham direto para cada um de nós, sem exceção e sem intermediários. Era ele, o SOL, que nascia, agora em outro ciclo. Era isso o que a natureza nos dava de modo místico, que é o modo sem intermediários, ou seja, é o modo próspero, onde a informação é plena e abundante e vem para todos. Antes de haver o Natal era natural confiar no instinto, e todo mundo tinha intuição. Era natural ser assim. Ouvir o corpo, ouvir a terra. Não é que éramos perfeitos, muito antes pelo contrário, ser pagão é de uma humildade, pois é trabalhar com o que é próprio, com a própria natureza, é ter humildade de ouvir o mundo de outro jeito. Deturpando e negando essa ideia de que é o próprio cosmos que entra em contato conosco diretamente, a ideia do Natal nos tirou a soberania de ser um animal cheio de vitalidade, mistério e sabedoria intrínseca. Com a ideia de que “alguém nasceu para nos salvar” fomos relevados ao nível de coitadinhos e vítimas, que são incapazes de salvar a si mesmos. E assim é que pessoas que não confiam nas próprias intuições e nos próprios instintos podem ser facilmente controladas.
Por isso escolhi cozinhar comidas fortes, com molhos fortes, que enraízam o corpo.
Da próxima vez que se encontrar com o Natal, pense no Sol, a própria identidade, o coração em si. E lembre-se de quando você era Real: rainha ou rei. Como ele.
Maceió, 25 dezembro 2024.